Compreendi
que estava velho, e precisava de uma força; mas o Quincas Borba
partira seis meses antes para Minas Gerais, e levou consigo a melhor
das filosofias. Voltou quatro meses depois, e entrou-me em casa,
certa manhã, quase no estado em que eu o vira no Passeio Público. A
diferença é que o olhar era outro. Vinha demente. Contou-me que,
para o fim de aperfeiçoar o Humanitismo, queimara o manuscrito todo
e ia recomeçá-lo. A parte dogmática ficava completa, embora não
escrita; era a verdadeira religião do futuro.
– Juras
por Humanitas? perguntou-me.
– Sabes
que sim.
A
voz mal podia sair-me do peito; e aliás não tinha descoberto toda a
cruel verdade. O Quincas Borba não só estava louco, mas sabia que
estava louco, e esse resto de consciência, como uma frouxa lamparina
no meio das trevas, complicava muito o horror da situação. Sabia-o,
e não se irritava contra o mal; ao contrário, dizia-me que era
ainda uma prova de Humanitas, que assim brincava consigo mesmo.
Recitava-me longos capítulos do livro, e antífonas, e litanias
espirituais; chegou até a reproduzir uma dança sacra que inventara
para as cerimônias do Humanitismo. A graça lúgubre com que ele
levantava e sacudia as pernas era singularmente fantástica.
Outras
vezes amuava-se a um canto, com os olhos fitos no ar, uns olhos em
que, de longe em longe, fulgurava um raio persistente da razão,
triste como uma lágrima...
Morreu
pouco tempo depois, em minha casa, jurando e repetindo sempre que a
dor era uma ilusão, e que Pangloss, o caluniado Pangloss, não era
tão tolo como o supôs Voltaire.
Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas
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