quarta-feira, 31 de julho de 2024

O Astro

Sempre enfrentei problemas com a televisão. O primeiro foi que a gente tinha trauma de tevê desde o tempo de Sergipe, porque apareciam fotografias na revista O Cruzeiro, de pessoas assistindo à tevê no Rio de Janeiro, e a gente morria de inveja. Quando nos mudamos para a Bahia, também ainda não havia televisão por aqui, de forma que, assim que ela apareceu, eu já com 17 anos, meu pai comprou logo um aparelho e botou na sala. Tinha uma imagem-padrão e uma musiquinha, a gente assistia bastante.
A imagem-padrão era a silhueta de um índio, no meio do que parecia ser um alvo. “Se esse índio se mexer”, dizia meu pai quando ia lá dentro, “você me chame logo!”. Mas demorou muito para se mexer, o pessoal em casa até ficou meio desestimulado e quase que a gente nem ia mais à sala ver a imagem-padrão, só passávamos umas quatro ou cinco horas por noite espiando. Meu pai não se deixou abater. Boa música, boa música, dizia ele, alisando o aparelho.
Finalmente, os programas começaram. Tinha garota-propaganda (tudo falando carioca e alisando fogões e liquidificadores, era uma coisa emocionante; havia torcidas: eu, por exemplo, gostava mais da moça das lojas Florensilva, mas meu pai se mexia na cadeira quando surgia a moça da loja Duas Américas e dizia “muito bom esse liquidificador, um excelente liquidificador”) e apresentadores de paletó e gravata. Vinha gente de fora, também falando carioca e dizendo que o baiano era muito carinhoso e ma-ra-vi-lho-so e a imagem de nossa tevê era a melhor do Brasil e então ficávamos orgulhosíssimos e dizíamos “viu você, viu você?”.
O primeiro programa para que me convidaram era um jogo em que as pessoas tentavam adivinhar a profissão de outras pessoas. Cheguei lá de camisa esporte, recebi uma reprimenda: volte para casa e vista roupa de televisão, isto aqui é coisa séria. Voltei, vesti a roupa de televisão, e me dei mal, a começar pelo cumprimento, que tinha de ser “boa noite, senhores telespectadores” e eu não acertei a dizer telespectadores.
Boa noite, senhores tepelespectadores — disse eu finalmente, tendo suores frios.
Minha equipe perdeu, eu enterrei o time. Só me vinha na cabeça “tratorista”. “O senhor é tratorista?”, perguntava eu. “Não”, dizia o entrevistado. “Oh”, dizia eu. Mas minha mãe ficou muito orgulhosa e discutiu com uma vizinha que me achou um tanto burro. Ele não é burro, disse minha mãe, ele é somente meio bobo, é muito diferente.
Depois me chamaram para escrever para a Globo, me deram uma passagem e eu vim ao Rio, carregando uma maletinha de pau-de-arara. Fui para o Jardim Botânico, com a maletinha, às sete e meia da manhã. Achei que impressionaria bem se eu chegasse cedo, e ninguém tinha explicado que o pessoal só acordava depois das duas da tarde. Demorou bastante para me atenderem. Comi um sanduíche no boteco defronte, cortei o cabelo e dei informações a passantes. Às duas horas, mais ou menos, me levaram lá para dentro e me mandaram para o teatro onde gravavam um programa chamado Satiricon. Fiz grande sucesso. De vez em quando saía um cara lá de dentro e dizia: “Tudo bem aí, baiano?” Acabei encostando na sala da técnica e Bibi Vogel veio ver uma cena em que ela aparecia. “Você achou que saiu bem?”, perguntou ela. “Sim, sim”, respondi. “Brigadinho”, disse ela, passando a mão na minha cabeça. Jô Soares fez um quadro e me perguntou: “Achou bom, baiano?” Ah, uma beleza, disse eu, e ele falou “olhe aí, ô Vanucci, o baiano achou bom”. Durante algum tempo pensei que eles iam me contratar para ficar botando o polegar para cima e dizendo que tinha sido ótimo, mas até hoje não tenho certeza quanto a isto. Por volta das dez horas, voltei para o hotel e, no dia seguinte, para a Bahia. Até hoje guardo gratas recordações desse meu tempo de colaboração com a Globo.
Finalmente, excetuando algumas aparições com Glauber, em que, quando eu vi, tudo já tinha sido gravado, surgi no vídeo em companhia de Marília Gabriela, em São Paulo. Cheguei calmíssimo, com a suéter vestida ao contrário e a barba feita de um lado só, porque o motorista que foi me buscar no hotel estava com pressa. Marília apareceu de repente, coisa que não se faz.
Como vai? — disse ela, sorrindo.
Ah, da-da — respondi brilhantemente. — É... sim, ha-ha. Hu... Sim, como não, ha-ha, não? Ho-ho.
Eu já li seus livros — disse ela, me olhando como quem fala “eu compreendo”.
Felizmente, a mão que tremia estava do lado oposto ao da câmera e até que aquela suéter (é de minha mulher) ao contrário dá um certo charme. “Leve ele direitinho”, disse Marília ao motorista depois da entrevista, com um ar de preocupação no olhar.
Mas agora não, agora já estou acostumado. Por exemplo, todo mundo viu que eu fui entrevistado outro dia (aqui na Pituba, pelo menos, todo mundo viu) e me saí muito bem. É tudo uma questão de o sujeito estar na terra dele e todo mundo já saber como deve fazer as coisas. Meus agradecimentos à equipe médica da TV-Aratu, aos quatro câmeras e às 18 entrevistadoras, principalmente à que não desistiu. Um dia — é o que sempre digo a meu pai, quando ele pergunta o que é que eu quero da vida — eu ainda saio na capa de Amiga.

João Ubaldo Ribeiro, em O rei da noite

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