terça-feira, 16 de abril de 2024

Polícia e ladrão


Parece criança, Nando. Esquece essa arma, vamos conversar. Antes do pessoal chegar. O pessoal já vem. Eu aviso para a sua mãe que tudo acabou bem.
Esse tiro na perna não foi nada. Não adianta ser teimoso, cara. Lembra? Quando a gente montava em cavalo de vassoura. Voava do telhado. Entrava dentro do quadrado da escada. Ali, a gente guiava o nosso carro. Dentro da escada, entre os degraus da escada, lembra?
Por favor, deixa essa arma largada, vamos conversar. Me ajuda a lembrar: o dia que a gente foi roubar a dona da padaria. Era muita chata a dona da padaria, por isso a gente foi lá.
Era noitinha. Você sabia como entrar na padaria porque o seu tio trabalhava de confeiteiro, lembra? Os bolos que ele fazia e que a gente comia? Até que desconfiaram que ele tava fazendo bolo para bandido. Esconder 38 na rosquinha de coco. Seu tio quase foi preso, coitado. Que molecagem, Lembra? Que assalto!
A gente conseguiu entrar pela garagem, me parece. A gente chupou picolé, comeu bolachas Maria. A gente tomou guaraná e mascou chiclete. A gente nem queria sair mais de lá. A gente pegou moeda. Tudo porque a gente não gostava da dona da padaria. Ela sempre dizia que a gente roubava alguma coisa: um pirulito. Bala na maior cara dura.
A gente não tinha ainda essa cara dura que ela dizia, não tinha. Por isso que você teve a ideia da gente virar ladrão de verdade. E ir à padaria, no outro dia, só para olhar o desespero da broaca. Lembra? Serviço de gente grande, ela nem desconfiaria. A gente entrou de máscara. Feita de jornal. E a gente levou um apito junto. Para que era mesmo o apito, Nando?
Fala, Nando. Escuta: a gente é amigo desde muito tempo e não pode ficar aqui, brigando. Você é teimoso demais, Nando. Sempre foi. Lembra?
Quando pulava na lama só para fugir da escola. O seu negócio era jogar bola. Eu nunca fui bom de bola. Gostava era de te ver jogando e driblando. Eu torcia por você, Nando, sempre torci. Todo mundo tinha medo de você em campo. Não sei. As coisas se complicaram depois que seu pai morreu. Depois que incendiaram o barracão. Bateram na sua mãe. Corri lá para ver se você escapou do fogo.
Ali, sim, você ganhou uma cara dura, de demônio. Saindo do fogo e chorando. Chorando muito. Alguma coisa fumaçando no peito, sei lá. Eu entendo.
Eu só não entendo a gente perdendo tempo com essa intriga. Daqui a pouco o pessoal chega, Nando. Porra, há quanto tempo! Não era bem assim que eu queria te encontrar. Os dois aqui, deitados, como naquele dia. Logo depois do roubo da padaria. A gente ficou em cima da laje, de barriga cheia, imaginando como seria a vida em outros planetas. Lembra? Se existiam favelas em outros planetas. Se era legal morar na Lua.
Porra, Nando, não complica. Parece criança. Já falei para você esquecer, não adianta se arrastar na grama. Já perdemos muito sangue, Nando. Para que apontar essa arma para a minha cabeça, amigo? Não aponta.

Marcelino Freire, in Contos Negreiros

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