terça-feira, 16 de abril de 2024

Parte Dois | Um ano mais tarde...

Nunca é suave o chuviscar que não perturbou a calma – Não contei a ela que a amava mas quando fui embora do México comecei a pensar nela e então e comecei a dizer a ela que a amava em cartas, e quase fiz, e ela escreveu, também, belas cartas em espanhol, dizendo que eu era doce, e por favor, volte logo Voltei correndo tarde demais, eu devia ter voltado na primavera, quase voltei, não tinha grana, só cheguei até a fronteira do México e senti aquela ânsia de vômito do México – segui para a Califórnia e vivi em um barraco com jovens visitantes tipo monge budista todos os dias e segui para o norte até Desolation Peak e passei um verão rústico na natureza, comia e dormia sozinho – disse, “Logo vou voltar para os braços quentes de Tristessa” – mas esperei tempo demais.
Oh, Senhor, por que fizeste isso com teus próprios anjos, essa vida malograda, essa cena maltrapilha argh cheia de vômito e ladrões e morte? – não poderias ter-nos posto em um paraíso desolador onde tudo fosse alegre a qualquer preço? – És masoquista, Senhor, és o Doador Índio, és aquele que Odeia?
Estava finalmente de volta ao quarto de Bull depois de uma viagem de seis mil quilômetros desde o pico da montanha perto do Canadá, uma viagem por si só terrível o suficiente, não merece mais discussões – e ele saiu e a buscou.
Ele já havia me avisado: “Não sei qual o problema com ela, ela mudou nas últimas duas semanas, mesmo na semana passada –”
É por que ela sabia que eu estava para chegar?” pensei sombriamente –
Ela tem uns acessos e joga xícaras de café na minha cabeça e perde meu dinheiro e cai pela rua –” “Qual o problema com ela?”
Bolas. Tranquilizantes. – Disse a ela para não tomar demais – Você sabe como só um viciado velho, com muitos anos de experiência, sabe lidar com pílulas para dormir – ela não escuta, ela não sabe usar direito, toma três, quatro, às vezes cinco, uma vez, doze, não é mais a mesma Tristessa – O que quero fazer é casar com ela e conseguir minha cidadania, sabe. Você acha uma boa ideia? – Afinal de contas, ela é minha vida, sou a vida dela” –
Percebi que Old Bull tinha se apaixonado – por uma mulher que não se chamava Morfina.
Eu nunca a toco – é só um casamento de conveniência – você sabe o que estou falando – Eu não consigo descolar as paradas sozinho no mercado negro, eu não sei como, preciso dela e ela precisa do meu dinheiro.
Bull recebia US$ 150 por mês de um fundo de pensão feito por seu pai antes de morrer – seu pai o amara, e eu sabia por que, pois Bull é uma pessoa doce e terna, apesar de ter um pouquinho de presidiário, por anos em Nova York ele sustentou seu vício roubando uns US$ 30 por dia, durante vinte anos – Foi preso algumas vezes quando eles o pegavam com a mercadoria errada – na cadeia, ele era sempre o bibliotecário, é um grande erudito, de muitas maneiras. Com um interesse maravilhoso por história e antropologia e tudo relacionado com a poesia simbolista francesa, acima de tudo Mallarmé – Não estou falando do outro Bull4, que é o grande escritor que escreveu Junkey – Este é outro Bull, mais velho, quase sessenta, escrevi poemas em seu quarto durante todo o verão passado quando Tristessa era minha, minha, e eu não a tomava – Tinha alguma noção ascética ou celibatária idiota de que eu não devia tocar em uma mulher – Meu toque poderia tê-la salvo – Agora tarde demais –
Ele a traz para casa e logo vejo que há algo errado – Ela chega e entra cambaleante de braços com ele e dá um sorriso leve (graças a Deus por isso) e estende os braços rigidamente, não sei o que fazer e seguro seus braços no ar, “Qual o problema com Tristessa, ela está doente?”
Ela ficou o mês passado inteiro com uma perna paralisada e seus braços ficaram cobertos de cistos. Olha, no mês passado, ela foi uma garota muito doente.”
Qual o problema com ela agora?”
Psst – deixe ela sentar” –
Tristessa está me segurando e aos poucos aproxima seu lindo rosto moreno do meu, com um sorriso precioso, e finjo quase deliberadamente ser o americano confuso –
Olhe, eu ainda vou salvá-la –

Jack Kerouac, in Tristessa

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