sábado, 30 de março de 2024

Cecília em silêncio


Chico Buarque cantou muitas vezes o gozo do amor (“Joana francesa”, “Eu te amo”, “O meu amor”, “Samba e amor”), ou até mesmo a possibilidade do amor (“Tatuagem”, “A ostra e o vento”, “Futuros amantes”, “Choro bandido”), e talvez tenha mais vezes ainda cantado a dor da perda (“Retrato em branco e preto”, “Pedaço de mim”, “Atrás da porta”, “Abandono”, “Sobre todas as coisas”), mas em “Cecília” ele faz algo incomum: cantou a impossibilidade de cantar a amada, a incapacidade de fazer versos bons mesmo que sejam arroubos de amantes errados. Ao contrário, o poeta confessa invejar:

Quantos artistas
Entoam baladas
Para suas amadas
Com grandes orquestras

E também:

Quantos poetas
Românticos, prosas
Exaltam suas musas
Com todas as letras

Esse compositor diz que não pode entoar baladas para exaltar musas. Faltam-lhe letras, faltam-lhe orquestras. Ele não pode fazer como os outros e cantar a plenos pulmões o amor que sente:

Como tantos poetas
Tantos cantores
Tantas Cecílias
Com mil refletores

E por quê? Por não ser um grande poeta, um cantor romântico? Não. Mas pelo motivo que explica diretamente à sua musa:

Na tua presença
Palavras são brutas

E não só as palavras, as melodias também:

Mas nem as sutis melodias
Merecem, Cecília, teu nome
Espalhar por aí

Para merecer o direito de espalhar o nome Cecília por aí, de bradar seu amor e colocá-lo no centro do palco, o artista precisaria de uma delicadeza que as palavras não têm e uma sutileza à qual as melodias não chegam. Há uma recusa do gesto romântico vulgar, o da exaltação, e uma recusa da canção como balada, em que palavras e melodias somam forças. Ser altissonante não apenas é insuficiente; é também trair a presença de Cecília, a visão de Cecília, até mesmo o nome de Cecília.
Não é ele, portanto, que é bruto, carente de sutileza; é ela que não pode ser apreendida em versos.
Nesse sentido, o compositor não é um antirromântico, não está menosprezando as outras Cecílias – as outras musas, as outras amadas – que os outros cantam. O que está dizendo é que simplesmente não tem como cantar a sua Cecília. Está dizendo que não pode dizê-la:

Eu, que não digo
Mas ardo de desejo

Em vez de grandes orquestras e de todas as letras, como ele faz?

Eu te murmuro
Eu te suspiro
Eu, que soletro
Teu nome no escuro

E não o faz para ser escutado:

Me escutas, Cecília?
Mas eu te chamava em silêncio

Esse cantor não canta: ele murmura, suspira, soletra no escuro, chama em silêncio. Emite as palavras sem soltar a voz, sem abrir a boca, como que sussurrando para si mesmo. E esse nome, Cecília, essas letras que ele sopra no escuro e no silêncio, em si mesmas sugerem essa sonoridade: duas sílabas sibilantes que já parecem pedir para que ele fique quieto; a suavidade do “l” seguido de outro “i” que impede a explosão do “a”.
Ele ainda reconhece que esses lábios entreabertos não estão tão tranquilos assim, tão repousados:

Pode ser que, entreabertos
Meus lábios de leve
Tremessem por ti

Tremor, ardor: toda a situação parece embutir um esforço de ser leve, de respeitar o silêncio, de conter o espalhamento. Atrás do sussurro, vibra a vontade de exaltá-la, de chamá-la em voz alta, mas isso seria pôr fim àquilo que o encanta, seria interromper a cena que o enleva:

Te olho
Te guardo
Te sigo
Te vejo dormir

No último verso da canção, assim, o significado que estava em suspenso se cristaliza na retina do leitor-ouvinte: vemos um homem, um artista, contendo seu êxtase diante da amada que dorme, e apenas murmurando seu nome, com o fôlego preso:

Eu, que te vejo
E nem quase respiro

Não é que seu desejo por aquela mulher seja menor que seu encanto por aquela visão; é que apenas olhar, mesmo que deixando escapar o nome sussurrado, faz jus àquele amor; olhar e sussurrar são o único modo de exaltar aquela musa que dorme. O jogo entre “olhar” e “guardar” (que em italiano significa “olhar”) aponta para isso: olhando a amada que dorme, ele a conserva dentro de si, ele não a perde, não deixa de merecê-la. E o verbo seguinte, “seguir”, parece dizer tanto que ele está firme em busca da amada, como que seus olhos seguem suas formas, desenhando seu corpo e seu rosto desacordados. Qualquer palavra a não ser seu nome, qualquer melodia a não ser um suspiro, será uma negação desse amor. Por essa redenção ao silêncio, na verdade, o desejo parece ainda mais intenso.
A canção, em suma, é como um instantâneo, o registro de alguns minutos que o artista passa a contemplar a figura de uma mulher, tremendo de desejo, segurando a respiração, suspendendo o canto. Como quase sempre em Chico Buarque e nos grandes compositores, a própria canção representa aquilo que descreve. A melodia é discreta, interrompida sempre que parece que vai subir na escala: “Eu, que te vejo / E nem quase respiro”, assim como “Eu, que soletro / Teu nome no escuro” e “Eu, que não digo / Mas ardo de desejo”, vai na descendente, quase como um trecho de canto falado. O que parece soar como um refrão, “Me escutas, Cecília?”, logo é desfeito por “Mas eu te chamava em silêncio”. Chico e seu parceiro, Luiz Claudio Ramos, emprestam aqui a arquitetura tonal de Tom Jobim, cujo centro sempre parece escapar, cuja melodia recomeça sem terminar.
Essa instabilidade, esse ritmo em ondas para cima e para baixo, é a tradução do estado de espírito do cantor suspenso entre arder e olhar. A melodia, como a letra, só parece se acomodar no último verso, no lá menor de “dormir”. O leitor-ouvinte imediatamente se projeta no lugar do cantor e busca suas próprias memórias de cenas semelhantes, de quando ficou admirando a beleza de uma mulher que dormia e achou que seria uma injustiça poética despertá-la naquele momento memorável (o que não significa que não tenha esperado até ela acordar)... Há em uma mulher dormindo um poder de sugestão que nenhum verso captaria.
Por esse aspecto, “Cecília”, que é do CD As cidades, de 1998, lembra algumas poucas canções de Chico Buarque nas quais o prazer e o sofrer dão espaço à admiração sutil. Pense em “Morro Dois Irmãos”, do CD Uma palavra, de 1995, na qual ele diz que aprendeu a desconfiar do silêncio daquela montanha porque sente nele a “pulsação atravessada” e a “concentração de tempos”. Aquilo que parece ser uma ausência de ritmos é, na realidade, “todos os ritmos por dentro”, uma música parada que pulsa e põe a rocha em movimento. Do mesmo modo, a dormente Cecília não se fixa em palavras e melodias; é uma música parada e pulsante. Mas a ênfase é contrária: se antes se tratava de chamar a atenção para a música sob o silêncio, agora se trata de chamar a atenção para o silêncio sob a música.
Das canções anteriores, “Cecília” parece dialogar com a excepcional “Todo o sentimento”, de Chico e Cristóvão Bastos, de 1987, cuja última estrofe diz:

Depois de te perder
Te encontro, com certeza
Talvez num tempo da delicadeza
Onde não diremos nada
Nada aconteceu
Apenas seguirei, como encantado
Ao lado teu

O reencontro dos amantes será num tempo delicado e nada será dito, como se nada tivesse acontecido, e o cantor seguirá a amada apenas encantado, quieto, como quem recolhe o que tinha perdido e já não precisa perder de novo. É a mesma decisão que toma o amante de Cecília, que tanto queria exaltá-la, mas que sabe que o dizer feriria a sutileza.
As três canções, separadas em onze anos, são de um compositor maduro, o mesmo Chico dos romances que escreve a partir de Estorvo (1991) e que tanto abordam o silêncio que as palavras não preenchem, ou melhor, que elas podem sugerir por sua carga afetiva (como o protagonista de Budapeste sussurrando a língua portuguesa para a secretária eletrônica de sua amada carioca). Como dizia T. S. Eliot, a poesia não é soltar a emoção, é escapar dela; não é expressar a personalidade, é escapar dela; mas só quem tem personalidade e emoção sabe o que é escapar de ambas. Em “Cecília”, a grandeza da canção está justamente em sua fuga da retórica emotiva. E é isso que a faz ainda mais eloquente e emocionante.

Daniel Piza, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos

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