sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Nosso amigo landucci

A nova casa de Lélio Landucci fica no alto de uma encosta e domina o vale de Botafogo, densamente povoado e cheio de silêncio. Amigos, muitos amigos, o conduziram até ali, numa tarde de céu mais neutro do que azul, mas tão tranquila que, sob seu arco, a ideia de casa e o sentimento de paz se fundiam numa unidade perfeita. Sim, Lélio Landucci fora realmente descansar, depois de muito andar pelas ruas do centro, onde o víamos sempre com sua pasta, suas provas de livros dos outros, sua civilizada gentileza (comment allez vous, mon cher?), seus vastos conhecimentos quase sem aplicação, sua bondade numerosa e seu discretíssimo destino de artista a quem a vida impunha tarefas rotineiras, escrupulosamente cumpridas.
Portinari, Manuel Bandeira, Dante Milano, Órris Soares, Alcides da Rocha Miranda, cada um que ali estava podia contar sua memória particular de Landucci, e recompor um traço que, somado a outros, reconstituiria a figura inteira, intelectualmente das mais aristocráticas que já passaram por aqui. Era escultor, arquiteto, crítico de arte, técnico em artes gráficas, mas era, sobretudo, um florentino de velha tradição cultural e de um bom gosto infalível, com a visão estética enriquecida pela perspectiva sociológica, adquirida em seus tempos parisienses de militante socialista. Na casa dos vinte anos, foi aviador militar e participou da Guerra Mundial de 1914 sob a bandeira da Itália, mas não se podia dizer ao certo se nele o francês era menos autêntico do que o italiano; e a impressão final que nos causava era a de um europeu, no sentido mais fino dessa palavra, que vai perdendo o sentido. Contudo ainda, tantos anos de Brasil, e mais precisamente de vida carioca, o foram marcando por sua vez, inscrevendo em sua personalidade linhas de um estilo brasileiro tão cordial que o antigo Landucci, por assim dizer, adquirira uma segunda natureza, sem nenhum dilaceramento das raízes originais, antes as mantendo fixas e vivazes. Nem seria possível, a quem teve o privilégio de ser conterrâneo de Dante e de Giotto, esquecer-se.

del bello ovile ov’io dormi’ agnello.

Como não há nos museus, ao que conste, esculturas de sua lavra, nem se conhecem obras consideráveis de arquitetura construídas sob sua traça, nem deixou livros a não ser o admirável estudinho sobre Portinari, além de alguns artigos esparsos de jornal (inclusive um nas edições de cinquentenário do Correio da Manhã), sua presença no meio artístico do Brasil, dentro de alguns anos, estará, talvez, esfumada. Contudo, sua passagem não foi a da sombra da asa sobre a água. Esteve entre os mais avisados julgadores das experiências artísticas, nos últimos vinte e cinco anos; era uma opinião que contava, num meio onde tão poucas sugestões úteis podem recolher os artistas plásticos para se orientarem; além dos belos livros de arte que se devem a seu senso gráfico servido por um cuidado chinês da minúcia, temos a creditar-lhe um novo tipo de edições oficiais, de sobriedade nobre e elegante, como são hoje as do Instituto Nacional do Livro. Mas, sobretudo, legou-nos uma lição cotidiana, sem a menor ênfase, de esmero e pureza. Rever provas, paginar, idealizar um frontispício, eram operações que lhe mereciam tanto apreço quanto o debate sobre os rumos da arte no mundo politizado de hoje, ou em torno das soluções urbanísticas de que o Rio carece, ou outro tema qualquer em que se comprazia sua inteligência crítica, tão segura e bem equipada.
Resta dele outro traço: foi um dos colaboradores de Landowski, no monumento ao Cristo do Corcovado, e dizem mesmo que a obra, em sua concepção geral, teria obedecido a um croqui de sua autoria. O público não sabe disso, e a estátua, que se integrou na paisagem do Rio, tem um sentido anônimo e coletivo, em cuja intimidade é grato imaginar, oculta mas generosa, a sensibilidade de Lélio Landucci.

Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira

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