[…]
Mas
os olhos verdes sendo os de Diadorim. Meu amor de prata e meu amor de
ouro. De doer, minhas vistas bestavam, se embaçavam de renúvem, e
não achei acabar para olhar para o céu. Tive pena do pescoço do
meu cavalo ― pedação, tábua suante, padecente. Voltar para trás,
para as boas serras! Eu via, queria ver, antes de dar à casca, um
pássaro voando sem movimento, o chão fresco remexido pela fossura
duma anta, o cabecear das árvores, o riso do ar e o fogo feito duma
arara. O senhor sabe o que é o frege dum vento, sem uma môita, um
pé de parede pra ele se retrasar? Diadorim não se apartou do meu
lado. Caso que arredondava a testa, pensando. Adivinhou que eu roçava
longe dele em meus pensamentos. ― Riobaldo, não se matou a Ana
Duzuza... Nada de reprovável não se fez... ― falou. E eu não
respondendo. Agora, o que era que aquilo me importava ― de
malfeitos e castigos? Eu ambicionava o suíxo manso dum córrego nas
lajes ― o bom sumiço dum riacho mato a fundo. E adverti memória
dos derradeiros pássaros do Bambual do Boi. Aqueles pássaros faziam
arêjo. Gritavam contra a gente, cada um asia sua sombra num palmo
vivo dágua. O melhor de tudo é a água. No escaldado... Saio daqui
com vida, deserteio de jaguncismo, vou e me caso com Otacília ― eu
jurei, do propôsto de meus todos sofrimentos. Mas mesmo depois,
naquela hora, eu não gostava mais de ninguém! só gostava de mim,
de mim! Novo que eu estava no velho do inferno. Dia da gente
desexistir é um certo decreto ― por isso que ainda hoje o senhor
aqui me vê. Ah, e os poços não se achavam... Alguém já tinha
declarado de morto. O Miquím, um rapaz sério sincero, que muito
valia em guerreio, esbarrou e se riu: ― Será que não é sorte?
Depois, se sofreu o grito de um, adiante: ― Estou cego!... Mais
aquele, o do pior ― caíu total, virado tôrto; embaraçando os
passos das montadas. De repente, um rosnou, reclamou baixo. Outro
também. Os cavalos bobejavam. Vi uma roda de caras de homens. Suas
as caras. Credo como algum ― até as orêlhas dele estavam
cinzentas. E outro: todo empretecido, e sangrava das capelas e
papos-dos-olhos. MedeiroVaz a nada não atendia? Ouvi minhas veias.
Aí, a rumo, eu pude pegar a rédea do animal de Diadorim ― aquelas
peças doeram na minha mão ― tive que fiquei um instante no
inclinado. ― Daqui, deste mesmo de lugar, mais não vou! Só
desarrastado vencido... ― mas falei. Diadorim pareceu em pedra, cão
que olha. Contanto me mirou a firme, com aquela beleza que nada
mudava. ― Pois vamos retornar, Riobaldo... Que vejo que nada campou
viável... Tal tempo! ― truquei, mais forte, rouco como um guariba.
Foi aí que o cavalo de Diadorim afundou aberto, espalhado no chão,
e se agoniou. Eu apeei do meu. MedeiroVaz estava ali, num aspeito
repartido. Pessoal companheiro, em redor, se engasgavam, pelo o
resultado. ― Nós temos de voltar, chefe? ― Diadorim solicitou.
Acabou de falar, e parou um gesto, para nós, a gente sofreasse. Tom
bom; mas se via que Medeiro Vaz não podia outro querer, a não ser o
que Diadorim perguntava. Medeiro Vaz, então ― por primeira vez ―
abriu dos lados as mãos, de nada não poder fazer; e ele esteve de
ombros rebaixados. Mais não vi, e entendi. Peguei minha cabaça,
bebi gole, amargo de felém. Mas era mesmo o final de se voltar, Deus
me disse. E ― o senhor mais saiba ― de supêto já eu estava
remoçado, são, disposto! Todos influídos assim. Pra trás, sempre
dá o prazer. Diadorim apalpou meu braço. Vi! os olhos dele
marejados. Mor que depois eu soube ― que, a ideia de se atravessar
o Liso do Sussuarão, ele Diadorim era que a Medeiro Vaz tinha
aconselhado.
Mas,
para que contar ao senhor, no tinte, o mais que se mereceu? Basta o
vulto ligeiro de tudo. Como Deus foi servido, de lá, do estralal do
sol, pudemos sair, sem maiores estragos. Isto é, uns homens mortos,
e mais muitos dos cavalos. Mesmo o mais grave sido que restamos sem
os burros, fugidos por infelizes, e a carga quase toda, toda, com os
mantimentos, a gente perdemos. Só não acabamos sumidos
dextraviados, por meio do regular das estrelas. E foi. Saímos dali,
num pintar de aurora. E em lugares deerrados. Mais não se podia. Céu
alto e o adiado da lua. Com outros nossos padecimentos, os homens
tramavam zuretados de fome ― caça não achávamos ― até que
tombaram à bala um macaco vultoso, destrincharam, quartearam e
estavam comendo. Provei. Diadorim não chegou a provar. Por quanto ―
juro ao senhor ― enquanto estavam ainda mais assando, e manducando,
se soube, o corpudo não era bugio não, não achavam o rabo. Era
homem humano, morador, um chamado José dos Alves! Mãe dele veio de
aviso, chorando e explicando! era criaturo de Deus, que nú por falta
de roupa... Isto é, tanto não, pois ela mesma ainda estava vestida
com uns trapos; mas o filho também escapulia assim pelos matos, por
da cabeça prejudicado. Foi assombro. A mulher, fincada de joelhos,
invocava. Algum disse! ― Agora, que está bem falecido, se come o
que alma não é, modo de não morrermos todos... Não se achou
graça. Não, mais não comeram, não puderam. Para acompanhar, nem
farinha não tinham. E eu lancei. Outros também vomitavam. A mulher
rogava. Medeiro Vaz se prostrou, com febre, diversos perrengavam. ―
Aí, então, é a fome? ― uns xingavam. Mas outros conseguiram da
mulher informação: que tinha, obra de quarto-de-légua de lá, um
mandiocal sobrado. ― Arre que não! ― ouvi gritarem: que, de
certo, por vingança, a mulher ensinasse aquilo, de ser
mandioca-brava! Esses olhavam com terrível raiva. Nesse tempo, o
Jacaré pegou de uma terra, qualidade que dizem que é de bom
aproveitar, e gostosa. Me deu, comi, sem achar sabor, só o pepêgo
esquisito, e enganava o estômago. Melhor engulir capins e folhas.
Mas uns já enchiam até capanga, com torrão daquela terra. Diadorim
comeu. A mulher também aceitou, a coitada. Depois Medeiro Vaz passou
mal, outros tinham dôres, pensaram que carne de gente envenenava.
Muitos estavam doentes, sangrando nas gengivas, e com manchas
vermelhas no corpo, e danado doer nas pernas, inchadas. Eu cumpria
uma disenteria, garrava a ter nôjo de mim no meio dos outros. Mas
pudemos chegar até na beira do dos-Bois, e na Lagoa Sussuarana, ali
se pescou. Nós trouxemos aquela mulher, o tempo todo, ela temia de
que faltasse outro de-comer, e ela servisse. ― Quem quiser bulir
com ela, que me venha! ― Diadorim garantiu. ― Que só venha! ―
eu secundei, do lado dele. Matou-se capivara gorda, por fim. Dum
geralista roto, ganhamos farinha-de-burití, sempre ajudava. E
seguimos o corgo que tira da Lagoa Sussuarana, e que recebe o do
Jenipapo e a Vereda-do-Vitorino, e que verte no Rio Pandeiros ―
esse tem cachoeiras que cantam, e é d água tão tinto, que papagaio
voa por cima e gritam, sem acordo: ― É verde! É azul! É
verde! É verde!... E longe pedra velha remelêja, vi. Santas
águas, de vizinhas. E era bonito, no correr do baixo campo, as
flores do capitão-da-sala ― todas vermelhas e alaranjadas,
rebrilhando estremecidas, de reflexo. ― E o cavalheiro-da-sala... ―
Diadorim falou, entusiasmado. Mas o Alaripe, perto de nós, sacudiu a
cabeça. ― Em minha terra, o nome dessa ― ele disse ― é
dona-joana... Mas o leite dela é venenoso…
Esbandalhados
nós estávamos, escatimados naquela esfregada. Esmorecidos é que
não. Nenhum se lastimava, filhos do dia, acho mesmo que ninguém se
dizia de dar por assim. Jagunço é isso. Jagunço não se escabrêia
com perda nem derrota ― quase que tudo para ele é o igual. Nunca
vi. Pra ele a vida já está assentada! comer, beber, apreciar
mulher, brigar, e o fim final. E todo o mundo não presume assim?
Fazendeiro, também? Querem é trovão em outubro e a tulha cheia de
arroz. Tudo que eu mesmo, do que mal houve, me esquecia.Tornava a ter
fé na clareza de Medeiro Vaz, não desfazia mais nele, digo.
Confiança ― o senhor sabe ― não se tira das coisas feitas ou
perfeitas! ela rodeia é o quente da pessoa. E despaireci meu
espírito de ir procurar Otacília, pedir em casamento, mandado de
virtude. Fui fogo, depois de ser cinza. Ah, a algum, isto é que é,
a gente tem de vassalar. Olhe! Deus come escondido, e o diabo sai por
toda parte lambendo o prato... Mas eu gostava de Diadorim para poder
saber que estes gerais são formosos.
Talmente,
também, se carecia de tomar repouso e aguardo. Por meios e modos,
sortimos arranjados animais de montada, arranchamos dias numa fazenda
hospitaleira na Vereda do Alegre, e viemos vindo atravessando o Pardo
e o Acarí, em toda a parte a gente era recebida a bem.
Tardou
foi para se ter sinal dos bandos dos Judas. Mas a vantagem nossa era
que todos os moradores pertenciam do nosso lado. MedeiroVaz não
maltratava ninguém sem necessidade justa, não tomava nada à força,
nem consentia em desatinos de seus homens. Esbarrávamos em lugar, as
pessoas vinham, davam o que podiam, em comidas, outros presentes. Mas
os hermógenes e os cardões roubavam, defloravam demais,
determinavam sebaça em qualquer povoal atôa, renitiam feito peste.
Na ocasião, o Hermógenes beirava a Bahia de lá, se soube, e eram
um mundo enorme de má gente. E o Ricardão? Estivesse, esperasse.
Dando meias andadas, nós chegamos num ponto-verdadeiro, num
Burití-do-Zé. Dono de lá, Sebastião Vieira, tinha curral e casa.
E guardava munição da gente: mais de dez mil tiros de bala.
Por
que foi que não se fez combate, depois naqueles meses todos? A
verdade digo ao senhor: os soldados do Governo perseguiam a gente.
Major Oliveira, Tenente Ramiz e Capitão Melo Franco ― esses não
davam espaço. E Medeiro Vaz pensava era um pensamento: a gente
mamparreasse de com eles não guerrear, não se esperdiçar ―
porque as nossas armas guardavam um destino só, de dever.
Escapulíamos, esquipávamos. Vereda em vereda, como os buritís
ensinam, a gente varava para após. Se passava o Piratinga, que é
fundo, se passava: ou no Vau da Mata ou no Vau da Boiada; ou então,
pegando mais por baixo, o São Domingos, no Vau do José Pedro. Se
não, subíamos beira desse, até às nascentes, no São
Dominguinhos. A ser o importante, que se tinha de estudar, era
avançar depressa nas boas passagens nas divisas, quando militar
vinha cismado empurrando. E preciso de saber os trechos de se descer
para Goiás: em debruçar para Goiás, o chapadão por lá vai
terminando, despenha. Tem quebra-cangalhas e ladeiras terríveis
vermelhas. Olhe: muito em além, vi lugares de terra queimada e chão
que dá som ― um estranho. Mundo esquisito! Brejo do Jatobazinho:
de medo de nós, um homem se enforcou. Por aí, extremando, se
chegava até no Jalapão ― quem conhece aquilo? ― tabuleiro
chapadoso, proporema. Pois lá um geralista me pediu para ser
padrinho de filho. O menino recebeu nome de Diadorim, também. Ah,
quem oficiou foi o padre dos baianos, saiba o senhor: população de
um arraial baiano, inteira, que marchava de mudada ― homens,
mulheres, as crias, os velhos, o padre com seus petrechos e cruz e a
imagem da igreja ― tendo até bandinha-de-música, como vieram com
todos, parecendo nação de maracatú! Iam para os diamantes, tão
longe, eles mesmo dizendo! ...nos rios... Uns tocavam jumentos de
almocreve, outros carregavam suas coisas ― sacos de mantimentos,
trouxas de roupa, rede de caroá a tiracol. O padre, com
chapéu-de-couro prà-trasado. Só era uma procissão sensata
enchendo estrada, às poeiras, com o plequêio das alpercatas, as
velhas tiravam ladainha, gente cantável. Rezavam, indo da miséria
para a riqueza. E, pelo prazer de tomar parte no conforto de
religião, acompanhamos esses até à Vila da Pedra-de-Amolar. Lá
venta é da banda do poente, no tempo-das-águas; na seca, o vento
vem deste rumo daqui. O cortejo dos baianos dava parecença com uma
festa. No sertão, até enterro simples é festa.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas
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