sexta-feira, 29 de setembro de 2023

No sertão, até enterro simples é festa


[…]
Mas os olhos verdes sendo os de Diadorim. Meu amor de prata e meu amor de ouro. De doer, minhas vistas bestavam, se embaçavam de renúvem, e não achei acabar para olhar para o céu. Tive pena do pescoço do meu cavalo ― pedação, tábua suante, padecente. Voltar para trás, para as boas serras! Eu via, queria ver, antes de dar à casca, um pássaro voando sem movimento, o chão fresco remexido pela fossura duma anta, o cabecear das árvores, o riso do ar e o fogo feito duma arara. O senhor sabe o que é o frege dum vento, sem uma môita, um pé de parede pra ele se retrasar? Diadorim não se apartou do meu lado. Caso que arredondava a testa, pensando. Adivinhou que eu roçava longe dele em meus pensamentos. ― Riobaldo, não se matou a Ana Duzuza... Nada de reprovável não se fez... ― falou. E eu não respondendo. Agora, o que era que aquilo me importava ― de malfeitos e castigos? Eu ambicionava o suíxo manso dum córrego nas lajes ― o bom sumiço dum riacho mato a fundo. E adverti memória dos derradeiros pássaros do Bambual do Boi. Aqueles pássaros faziam arêjo. Gritavam contra a gente, cada um asia sua sombra num palmo vivo dágua. O melhor de tudo é a água. No escaldado... Saio daqui com vida, deserteio de jaguncismo, vou e me caso com Otacília ― eu jurei, do propôsto de meus todos sofrimentos. Mas mesmo depois, naquela hora, eu não gostava mais de ninguém! só gostava de mim, de mim! Novo que eu estava no velho do inferno. Dia da gente desexistir é um certo decreto ― por isso que ainda hoje o senhor aqui me vê. Ah, e os poços não se achavam... Alguém já tinha declarado de morto. O Miquím, um rapaz sério sincero, que muito valia em guerreio, esbarrou e se riu: ― Será que não é sorte? Depois, se sofreu o grito de um, adiante: ― Estou cego!... Mais aquele, o do pior ― caíu total, virado tôrto; embaraçando os passos das montadas. De repente, um rosnou, reclamou baixo. Outro também. Os cavalos bobejavam. Vi uma roda de caras de homens. Suas as caras. Credo como algum ― até as orêlhas dele estavam cinzentas. E outro: todo empretecido, e sangrava das capelas e papos-dos-olhos. MedeiroVaz a nada não atendia? Ouvi minhas veias. Aí, a rumo, eu pude pegar a rédea do animal de Diadorim ― aquelas peças doeram na minha mão ― tive que fiquei um instante no inclinado. ― Daqui, deste mesmo de lugar, mais não vou! Só desarrastado vencido... ― mas falei. Diadorim pareceu em pedra, cão que olha. Contanto me mirou a firme, com aquela beleza que nada mudava. ― Pois vamos retornar, Riobaldo... Que vejo que nada campou viável... Tal tempo! ― truquei, mais forte, rouco como um guariba. Foi aí que o cavalo de Diadorim afundou aberto, espalhado no chão, e se agoniou. Eu apeei do meu. MedeiroVaz estava ali, num aspeito repartido. Pessoal companheiro, em redor, se engasgavam, pelo o resultado. ― Nós temos de voltar, chefe? ― Diadorim solicitou. Acabou de falar, e parou um gesto, para nós, a gente sofreasse. Tom bom; mas se via que Medeiro Vaz não podia outro querer, a não ser o que Diadorim perguntava. Medeiro Vaz, então ― por primeira vez ― abriu dos lados as mãos, de nada não poder fazer; e ele esteve de ombros rebaixados. Mais não vi, e entendi. Peguei minha cabaça, bebi gole, amargo de felém. Mas era mesmo o final de se voltar, Deus me disse. E ― o senhor mais saiba ― de supêto já eu estava remoçado, são, disposto! Todos influídos assim. Pra trás, sempre dá o prazer. Diadorim apalpou meu braço. Vi! os olhos dele marejados. Mor que depois eu soube ― que, a ideia de se atravessar o Liso do Sussuarão, ele Diadorim era que a Medeiro Vaz tinha aconselhado.
Mas, para que contar ao senhor, no tinte, o mais que se mereceu? Basta o vulto ligeiro de tudo. Como Deus foi servido, de lá, do estralal do sol, pudemos sair, sem maiores estragos. Isto é, uns homens mortos, e mais muitos dos cavalos. Mesmo o mais grave sido que restamos sem os burros, fugidos por infelizes, e a carga quase toda, toda, com os mantimentos, a gente perdemos. Só não acabamos sumidos dextraviados, por meio do regular das estrelas. E foi. Saímos dali, num pintar de aurora. E em lugares deerrados. Mais não se podia. Céu alto e o adiado da lua. Com outros nossos padecimentos, os homens tramavam zuretados de fome ― caça não achávamos ― até que tombaram à bala um macaco vultoso, destrincharam, quartearam e estavam comendo. Provei. Diadorim não chegou a provar. Por quanto ― juro ao senhor ― enquanto estavam ainda mais assando, e manducando, se soube, o corpudo não era bugio não, não achavam o rabo. Era homem humano, morador, um chamado José dos Alves! Mãe dele veio de aviso, chorando e explicando! era criaturo de Deus, que nú por falta de roupa... Isto é, tanto não, pois ela mesma ainda estava vestida com uns trapos; mas o filho também escapulia assim pelos matos, por da cabeça prejudicado. Foi assombro. A mulher, fincada de joelhos, invocava. Algum disse! ― Agora, que está bem falecido, se come o que alma não é, modo de não morrermos todos... Não se achou graça. Não, mais não comeram, não puderam. Para acompanhar, nem farinha não tinham. E eu lancei. Outros também vomitavam. A mulher rogava. Medeiro Vaz se prostrou, com febre, diversos perrengavam. ― Aí, então, é a fome? ― uns xingavam. Mas outros conseguiram da mulher informação: que tinha, obra de quarto-de-légua de lá, um mandiocal sobrado. ― Arre que não! ― ouvi gritarem: que, de certo, por vingança, a mulher ensinasse aquilo, de ser mandioca-brava! Esses olhavam com terrível raiva. Nesse tempo, o Jacaré pegou de uma terra, qualidade que dizem que é de bom aproveitar, e gostosa. Me deu, comi, sem achar sabor, só o pepêgo esquisito, e enganava o estômago. Melhor engulir capins e folhas. Mas uns já enchiam até capanga, com torrão daquela terra. Diadorim comeu. A mulher também aceitou, a coitada. Depois Medeiro Vaz passou mal, outros tinham dôres, pensaram que carne de gente envenenava. Muitos estavam doentes, sangrando nas gengivas, e com manchas vermelhas no corpo, e danado doer nas pernas, inchadas. Eu cumpria uma disenteria, garrava a ter nôjo de mim no meio dos outros. Mas pudemos chegar até na beira do dos-Bois, e na Lagoa Sussuarana, ali se pescou. Nós trouxemos aquela mulher, o tempo todo, ela temia de que faltasse outro de-comer, e ela servisse. ― Quem quiser bulir com ela, que me venha! ― Diadorim garantiu. ― Que só venha! ― eu secundei, do lado dele. Matou-se capivara gorda, por fim. Dum geralista roto, ganhamos farinha-de-burití, sempre ajudava. E seguimos o corgo que tira da Lagoa Sussuarana, e que recebe o do Jenipapo e a Vereda-do-Vitorino, e que verte no Rio Pandeiros ― esse tem cachoeiras que cantam, e é d água tão tinto, que papagaio voa por cima e gritam, sem acordo: ― É verde! É azul! É verde! É verde!... E longe pedra velha remelêja, vi. Santas águas, de vizinhas. E era bonito, no correr do baixo campo, as flores do capitão-da-sala ― todas vermelhas e alaranjadas, rebrilhando estremecidas, de reflexo. ― E o cavalheiro-da-sala... ― Diadorim falou, entusiasmado. Mas o Alaripe, perto de nós, sacudiu a cabeça. ― Em minha terra, o nome dessa ― ele disse ― é dona-joana... Mas o leite dela é venenoso…
Esbandalhados nós estávamos, escatimados naquela esfregada. Esmorecidos é que não. Nenhum se lastimava, filhos do dia, acho mesmo que ninguém se dizia de dar por assim. Jagunço é isso. Jagunço não se escabrêia com perda nem derrota ― quase que tudo para ele é o igual. Nunca vi. Pra ele a vida já está assentada! comer, beber, apreciar mulher, brigar, e o fim final. E todo o mundo não presume assim? Fazendeiro, também? Querem é trovão em outubro e a tulha cheia de arroz. Tudo que eu mesmo, do que mal houve, me esquecia.Tornava a ter fé na clareza de Medeiro Vaz, não desfazia mais nele, digo. Confiança ― o senhor sabe ― não se tira das coisas feitas ou perfeitas! ela rodeia é o quente da pessoa. E despaireci meu espírito de ir procurar Otacília, pedir em casamento, mandado de virtude. Fui fogo, depois de ser cinza. Ah, a algum, isto é que é, a gente tem de vassalar. Olhe! Deus come escondido, e o diabo sai por toda parte lambendo o prato... Mas eu gostava de Diadorim para poder saber que estes gerais são formosos.
Talmente, também, se carecia de tomar repouso e aguardo. Por meios e modos, sortimos arranjados animais de montada, arranchamos dias numa fazenda hospitaleira na Vereda do Alegre, e viemos vindo atravessando o Pardo e o Acarí, em toda a parte a gente era recebida a bem.
Tardou foi para se ter sinal dos bandos dos Judas. Mas a vantagem nossa era que todos os moradores pertenciam do nosso lado. MedeiroVaz não maltratava ninguém sem necessidade justa, não tomava nada à força, nem consentia em desatinos de seus homens. Esbarrávamos em lugar, as pessoas vinham, davam o que podiam, em comidas, outros presentes. Mas os hermógenes e os cardões roubavam, defloravam demais, determinavam sebaça em qualquer povoal atôa, renitiam feito peste. Na ocasião, o Hermógenes beirava a Bahia de lá, se soube, e eram um mundo enorme de má gente. E o Ricardão? Estivesse, esperasse. Dando meias andadas, nós chegamos num ponto-verdadeiro, num Burití-do-Zé. Dono de lá, Sebastião Vieira, tinha curral e casa. E guardava munição da gente: mais de dez mil tiros de bala.
Por que foi que não se fez combate, depois naqueles meses todos? A verdade digo ao senhor: os soldados do Governo perseguiam a gente. Major Oliveira, Tenente Ramiz e Capitão Melo Franco ― esses não davam espaço. E Medeiro Vaz pensava era um pensamento: a gente mamparreasse de com eles não guerrear, não se esperdiçar ― porque as nossas armas guardavam um destino só, de dever. Escapulíamos, esquipávamos. Vereda em vereda, como os buritís ensinam, a gente varava para após. Se passava o Piratinga, que é fundo, se passava: ou no Vau da Mata ou no Vau da Boiada; ou então, pegando mais por baixo, o São Domingos, no Vau do José Pedro. Se não, subíamos beira desse, até às nascentes, no São Dominguinhos. A ser o importante, que se tinha de estudar, era avançar depressa nas boas passagens nas divisas, quando militar vinha cismado empurrando. E preciso de saber os trechos de se descer para Goiás: em debruçar para Goiás, o chapadão por lá vai terminando, despenha. Tem quebra-cangalhas e ladeiras terríveis vermelhas. Olhe: muito em além, vi lugares de terra queimada e chão que dá som ― um estranho. Mundo esquisito! Brejo do Jatobazinho: de medo de nós, um homem se enforcou. Por aí, extremando, se chegava até no Jalapão ― quem conhece aquilo? ― tabuleiro chapadoso, proporema. Pois lá um geralista me pediu para ser padrinho de filho. O menino recebeu nome de Diadorim, também. Ah, quem oficiou foi o padre dos baianos, saiba o senhor: população de um arraial baiano, inteira, que marchava de mudada ― homens, mulheres, as crias, os velhos, o padre com seus petrechos e cruz e a imagem da igreja ― tendo até bandinha-de-música, como vieram com todos, parecendo nação de maracatú! Iam para os diamantes, tão longe, eles mesmo dizendo! ...nos rios... Uns tocavam jumentos de almocreve, outros carregavam suas coisas ― sacos de mantimentos, trouxas de roupa, rede de caroá a tiracol. O padre, com chapéu-de-couro prà-trasado. Só era uma procissão sensata enchendo estrada, às poeiras, com o plequêio das alpercatas, as velhas tiravam ladainha, gente cantável. Rezavam, indo da miséria para a riqueza. E, pelo prazer de tomar parte no conforto de religião, acompanhamos esses até à Vila da Pedra-de-Amolar. Lá venta é da banda do poente, no tempo-das-águas; na seca, o vento vem deste rumo daqui. O cortejo dos baianos dava parecença com uma festa. No sertão, até enterro simples é festa.

Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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