segunda-feira, 31 de julho de 2023

Quiche com salada

O grupo de Whatsapp chamava-se Almoço de Páscoa e comunicava algo como “as quiches são com a gente, as saladas são com a gente, o resto é com vocês”. O resto! Estava na cara que era putaria, né? Se fosse vinho, diriam “vinho”. Se fosse sobremesa, diriam “sobremesa”. O resto… era putaria. Vesti saia comprida rodada porque estava bem naquela semana, estava solar. Quando fico solar, acredito que posso ser um pouco hippie. Depois passa (graças a Deus). Eu tinha um namorado treze anos mais velho e isso prometia uma vida maravilhosa para mim. Uma vida cinco em um. Namorado mas também pai, professor, mestre e mentor. O namoro duraria cinco semanas porque, eu viria então a descobrir, ele era chato e tinha problemas de intestino.
Eu havia parado com o antidepressivo Escitalopram que, apesar do nome, não me deixava ficar excitada nem com sessenta e sete casais transando ao mesmo tempo. E não digo isso porque estou inventando um número qualquer, trata-se de um vídeo pornô japonês que esse mesmo grupo Almoço de Páscoa tinha mandado para mim semanas antes. Eram sessenta e sete casais japoneses transando ao mesmo tempo num parque ensolarado. Fazia um ano que esse grupo tentava me chamar para um desses almoços, sempre com um papo de “galera do cinema descolada, pra falar sobre a vida”, mas eu nunca ia porque não conhecia ninguém (e porque as pessoas de cinema que estão de fato fazendo cinema não perdem tempo andando com gente descolada, e para falar sobre a vida eu só acreditava pagando a alguém que tivesse estudado muito).
Mas, como dizia, eu tinha parado com o antidepressivo fazia cerca de três meses, tempo suficiente para que não tivesse sobrado nadinha no meu sangue. E estava numa fase estranhíssima, sentindo tesão até em boneco de posto.
Parar de tomar um remédio que havia me transmutado num legume sexual me devolvia agora um ânimo juvenil que nem na mais tenra adolescência experimentei. Eu era um garoto de quinze anos que dividia as emoções do mundo entre “livro merda de geografia prova amanhã” e “qualquer pele encostada em mim me fará contorcer de amor”. Foi quando por fim topei ver qual era a da galera das quiches e saladas. Magra, entediada de morte com a vida sexual comezinha da moça urbana falsamente ousada, e pronta para viver aquele momento.
Ao chegar ao grande evento, uma decepção: as meninas realmente estavam na cozinha lavando as saladas. Vestidas. As meninas que ainda chegariam, realmente trariam quiches. E elas viriam vestidas. E pretendiam continuar vestidas. O vinho que levei realmente foi aberto, e “era exatamente o que queria dizer ‘o resto é com vocês’”. Os rapazes conversavam na varanda sobre “que tipo de música eletrônica ainda dá pra encarar”, enquanto o mais feinho deles atacava de DJ usando o Bluetooth do celular. Então era só isso? Pessoas fofas fazendo amigos e saladas e quiches? Vamos ouvir sucessos dos anos 1980 e rir “das coisas que lembramos”? Calma, quando eu menos esperava, a coisa toda começou.
Como eu consegui entrar na Globo? Mandei só currículo ou fiz alguma oficina de roteiro lá dentro? E o primeiro filme? Vendi o argumento ou me encomendaram a partir de uma sinopse? E livro? Que editores eu conhecia? Eu poderia ler “um livro” da esposa talentosíssima e depois indicar? Ela não veio hoje, mas mandou dizer que me adora. E no jornal, quem eram meus contatos? Eu poderia ler os textos do marido da esposa talentosíssima e indicar? Achei que meu corpo seria usado de forma louca, perigosa e psiquiatricamente inesquecível, mas era só uma galera desempregada querendo usar minha agenda. Tem coisa mais podre e degradante?
Mas aquilo não ficaria assim. Eu tinha feito laser nos pelos mais intrínsecos dos grandes lábios, veja, achando que seria uma noite longa. E os caras vêm me pedir contato profissional? Aquilo despertou em mim uma sede de vingança ainda maior que a libido desenfreada com que eu estava tendo de lidar naqueles dias.
Forjei então o mais sincero amor verdadeiro por todas as pessoas lá presentes. E comecei a pegar no cabelo delas, no joelho delas. Eram desempregadinhos tão bonitos, tão cheios de esperança, tão limpos. Acho que mordi mesmo o ombro de uma das moças, agradecendo a taça que ela me trouxe. E então propus uma brincadeira. Uma coisa leve, despretensiosa, só para a gente se conhecer mesmo, todos ali, na paz de Cristo. Vai que, se eu gostasse de alguém, depois ajudava na carreira, né?
A gente viraria a garrafa, como no jogo da verdade, mas, em vez de “pergunta e responde”, seria “manda e obedece”. Assim: Juju pede a Maria uma mordiscadinha na biqueta, Maria mordisqueta; Daniel pede a Maria uma lambidinha libidinosa na orelha, Maria lambelha; Maria pede a Daniel um tapinha na bunda, Daniel estabunda. Enquanto ainda estavam tímidos, era eu a dar as ordens que eles dariam. Era eu a colocar fala na boca daqueles personagens tão bonitos e limpos e desempregados.
E assim, tomados por álcool e pela energia inebriante do meu “descompensamento” químico, os desempregados todos começaram a transar muito, enquanto eu só observava. Quando “dei por mim”, estava numa poltroninha e na minha frente, num pobre sofá branquinho, uma quantidade infinita de possibilidades “buracais” se expressava. Um dos desempregados tentou me puxar pelo pé, como um morto que não desiste, mas um braço perdido, do epicentro do amor amorfo, puxou o desempregado para dentro.
Não deixei que me tocassem, não deixei que tirassem minha roupa. De mim não levaram um só número de telefone ou nome de “pessoa influente”. Nunca li nenhum texto deles. Nunca os indiquei a ninguém. Como era eu a rodar a garrafa, fiz de um jeito que ela nunca apontasse para mim. Nas poucas vezes que quase apontou, enganei a todos, me movendo centímetros ou dando um imperceptível peteleco na garrafa. Era fácil enganá-los. Tão bonitos e limpos e desempregados.

Tati Bernardi, in Depois a louca sou eu

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