segunda-feira, 31 de julho de 2023

Notas do Subsolo | 5


Então aí está, finalmente aí está o tal choque com a realidade – balbuciei enquanto corria como uma flecha escada abaixo. – Isto, é claro, não é mais o papa deixando Roma e indo para o Brasil; é claro, não é um baile no lago de Como! “Você é um canalha”, passou-me de relance pela cabeça, “se agora está rindo dessas coisas”.
Não importa! – exclamei, respondendo a mim mesmo. – Agora está tudo perdido mesmo!
Não restava nem sinal dos outros, mas dava na mesma: eu sabia aonde eles tinham ido.
Junto à entrada estava parado um cocheiro noturno solitário, metido num capote de lã grosseira e todo salpicado da neve úmida que caía e que parecia morna. O ar estava abafado como numa estufa. O cavalinho malhado e peludo também estava todo salpicado e tossia, lembro-me bem disso. Atirei-me para o trenó de madeira; mas, mal havia levantado um pé para subir, a lembrança de Símonov dando-me pouco antes os seis rublos me fez fraquejar e deixei-me cair no trenó como um saco de farinha.
Não! É preciso muita coisa para resgatar isso! – gritei. – Mas hei de resgatar, ou então esta noite mesmo serei reduzido a nada. Vamos embora!
Partimos. Minha cabeça girava em turbilhão.
Implorar minha amizade de joelhos eles não vão. Isso é uma miragem, uma miragem infame, nojenta, romântica e fantástica; é o mesmo que o baile no lago de Como. Por isso eu tenho que dar uma bofetada em Zverkov! Sou obrigado a dar. Portanto, está decidido: estou agora voando para ir dar uma bofetada nele”.
Mais depressa, vamos!
O cocheiro deu uma sacudida nas rédeas.
Assim que eu entrar, dou-lhe a bofetada. Será que é necessário dizer algumas palavras introdutórias antes da bofetada? Não! Vou simplesmente entrar e esbofeteá-lo. Eles estarão todos sentados na sala e ele no divã com Olímpia. Maldita Olímpia! Uma vez ela riu da minha cara e me recusou. Vou arrastar Olímpia pelos cabelos e Zverkov pelas orelhas! Não, é melhor agarrá-lo por uma das orelhas e obrigá-lo a caminhar por toda a sala. Eles talvez comecem a me bater e me expulsem de lá. Na certa é o que vai acontecer. Que seja! De qualquer modo, quem primeiro deu a bofetada fui eu: a iniciativa foi minha e, de acordo com o código de honra, isso é o que importa. Ele já está desonrado e não se limpará da bofetada com surra nenhuma, apenas com um duelo. Ele terá de bater-se. E eles que me batam agora, que batam! Gentalha! Trudoliúbov é que vai bater mais: ele é muito forte. Ferfítchkin vai me agarrar de lado e pelos cabelos, provavelmente. Não importa! É para isso que estou indo. Suas cabeças de carneiro serão obrigadas a destrinchar, finalmente, o trágico de tudo isso! Quando eles estiverem me arrastando para a porta eu lhes gritarei que eles não valem o meu mindinho”.
Mais depressa, cocheiro, mais depressa! – gritava eu. Ele até estremeceu e sacudiu o chicote. Meu grito soara completamente selvagem.
O duelo será assim que clarear, está decidido. Quanto ao departamento, isso será o fim. Há pouco Ferfítchkin disse lepartamento, em vez de departamento. Mas onde conseguir as pistolas? Bobagem! Peço um adiantamento do salário e compro as pistolas. E a pólvora e as balas? Isso quem resolve é o padrinho. E como conseguir fazer tudo isso antes de clarear? E onde vou arrumar um padrinho? Não tenho conhecidos... Bobagem! – gritei, agitando-me ainda mais, como num turbilhão. – Bobagem! O primeiro que eu encontrar na rua e que eu abordar será obrigado a ser meu padrinho, do mesmo modo que é obrigado a salvar uma pessoa que está se afogando. Até as hipóteses mais excêntricas devem ser admitidas. E se amanhã eu pedisse ao próprio diretor para ser meu padrinho, ele também teria de concordar, por puro espírito cavalheiresco, e teria de guardar segredo. Anton Antônytch...”
O problema é que naquele exato instante eu percebia, de maneira mais clara e viva do que qualquer outra pessoa no mundo, todo o torpe absurdo de minhas suposições e todo o reverso da medalha, mas...
Mais depressa, cocheiro, mais depressa, patife, mais depressa!
Que é isso, patrão! – disse a força campesina.
De repente, um frio me percorreu.
Não seria melhor... não seria melhor... se eu fosse direto para casa agora? Ó meu Deus! Para que fui me oferecer ontem para aquele jantar! Mas não, não posso! E meu passeio de três horas da mesa até a lareira? Não, eles, eles e ninguém mais devem me pagar por esse passeio! Eles têm que lavar essa desonra!”
Mais depressa!
E se eles me entregarem à polícia? Não se atreverão! Ficarão com medo do escândalo. E se Zverkov, por desprezo, se recusar a duelar? Isso é até muito provável, mas então eu provarei para eles... Se isso acontecer, vou correndo amanhã à estação da posta na hora de sua partida, agarro-o pela perna, arranco seu capote quando ele for subir na diligência. Finco os dentes na sua mão e o mordo. “Vejam todos até que ponto podem levar um homem desesperado!”. Não importa que ele bata na minha cabeça com todos os outros atrás dele. Vou gritar para a plateia: “Vejam o moleque que parte para seduzir as circassianas com minha cusparada na cara!”.
Evidentemente, tudo estará terminado depois disso. Meu departamento terá desaparecido da face da terra. Serei preso, processado, demitido do emprego, encarcerado e enviado para a Sibéria, para viver lá sob vigilância. Tanto faz! Daqui a quinze anos, quando me libertarem, irei me arrastar no encalço dele, em farrapos, na miséria. Hei de procurar até encontrá-lo em alguma cidade de província. Ele estará casado e feliz. Terá uma filha já adulta. Eu lhe direi: “Olhe, monstro, veja minhas faces fundas e meus farrapos! Perdi tudo – carreira, felicidade, arte, ciência, a mulher amada, e tudo por sua causa. Aqui estão as pistolas. Eu vou descarregar a minha pistola e... e eu o perdoo”. Então atiro para o ar e desapareço para sempre...
Quase caí em prantos, embora naquele momento soubesse muito bem que tudo aquilo vinha de Sílvio e da Mascarada, de Lérmontov. E de repente eu senti uma vergonha terrível, tão terrível, que mandei parar o cavalo, desci do trenó e fiquei de pé na neve, no meio da rua. O cocheiro me olhava espantado e suspirava.
O que eu poderia fazer? Não podia ir para lá, era absurdo, mas tampouco podia abandonar as coisas como estavam, porque, senão, o resultado disso seria... Meu Deus! Como posso deixar isso de lado? Depois de tais insultos!
Não! – exclamei, atirando-me de novo dentro do trenó –, isso já estava traçado, é o meu destino! Vamos, vamos depressa para!
E, na impaciência, bati com o punho no pescoço do cocheiro.
Que há com você, por que está brigando? – gritou o pobre mujique, fustigando, porém, o pangaré com tanto ímpeto que ele começou a escoicear.
A neve úmida caía em flocos. Desabotoei meu casaco, sem me importar com ela. Esqueci de tudo o mais, porque havia me decidido definitivamente pela bofetada e sentia com pavor que ela teria de acontecer e que teria de ser obrigatoriamente naquele momento, e nenhuma força seria capaz de me impedir. Nas ruas desertas lampejavam lugubremente os lampiões através da bruma nevada, semelhantes a tochas de enterro. A neve penetrou dentro do meu capote, do meu paletó, da minha gravata, derretendo; não me cobri: tudo estava perdido mesmo! Finalmente chegamos. Saltei fora do trenó meio inconsciente, subi correndo os degraus e pus-me a bater na porta com as mãos e os pés. Sentia uma fraqueza terrível nos joelhos. Não tardaram a abrir, como se já soubessem da minha chegada. (De fato, Símonov havia prevenido que talvez viesse mais alguém, que era preciso avisar por lá e tomar algumas precauções. O local era uma das “lojas de modas” que já há muito tempo foram fechadas pela polícia. Durante o dia eram de fato lojas, mas, à noite, pessoas com recomendação podiam ser recebidas ali.) Atravessei com passos rápidos a loja escura e entrei no salão, já meu conhecido, onde brilhava uma única vela, e parei atônito: eles não estavam lá!
Onde estão eles? – perguntei a alguém.
Mas, pelo visto, eles já tinham se dispersado...
Diante de mim estava uma mulher com um sorriso idiota – era a própria dona do lugar, que me conhecia ligeiramente. Um minuto depois abriu-se uma porta e entrou outra pessoa.
Sem prestar atenção a nada, fiquei caminhando pela sala e creio que falava comigo mesmo. Era como se tivesse sido salvo da morte e alegremente sentia isso com todo o meu ser: pois eu ia dar a bofetada, sem dúvida eu ia dar a bofetada! Mas agora eles não estavam mais lá e... tudo havia desaparecido, tudo havia mudado! Olhei em volta. Ainda não me dera conta totalmente da situação. Olhei mecanicamente para a moça que acabara de entrar: na minha frente perpassou um rosto fresco, jovem, um pouco pálido, com sobrancelhas retas e escuras e um olhar sério, que parecia um pouco espantado. Isso me agradou imediatamente; eu a teria odiado se ela estivesse sorrindo. Pus-me a olhá-la mais fixamente e com certo esforço: não tinha conseguido ainda organizar meus pensamentos. Havia algo simples e bondoso naquele rosto, mas era, de certo modo, estranhamente sério. Estou certo de que isso não a favorecia num lugar como aquele e que nenhum daqueles bobalhões havia prestado atenção nela. Ademais, ela não podia ser chamada de beldade, embora fosse alta e forte, de boa constituição. Sua roupa era extraordinariamente simples. Algo perverso me mordeu: marchei diretamente em sua direção.
Sem querer, vi-me de relance num espelho. Meu rosto desfigurado me pareceu extremamente repulsivo: pálido, cruel, vil, com os cabelos em desordem. “Não importa, estou feliz com isso”, pensei, “parecer a ela repulsivo me deixa de fato satisfeito; gosto disso...”

Dostoiévski, in Notas do subsolo

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