quarta-feira, 26 de abril de 2023

Piloto de Guerra | I


Sem dúvida, estou sonhando. Estou no ginásio. Tenho quinze anos. Resolvo pacientemente meu problema de geometria. Apoiado na carteira escura, uso direitinho o compasso, a régua, o transferidor. Estou concentrado e tranquilo. Os camaradas, atrás de mim, falam baixinho. Um deles alinha as cifras num quadro negro. Alguns, menos sérios, jogam bridge. De quando em quando, mergulho mais longe no sonho e dou uma espiada pela janela. Um galho de árvore oscila docemente ao sol. Fico olhando muito tempo. Sou um aluno distraído… Sinto prazer em experimentar esse sol, como em saborear esse odor infantil da carteira, do giz, do quadro-negro. Encerro-me com tanta alegria nessa infância bem protegida. Bem sei: primeiro, há a infância, o ginásio, os camaradas, depois chega o dia em que fazemos os exames. Em que recebemos algum diploma. Em que atravessamos, com um aperto no coração, um certo limiar além do qual, subitamente, somos homens. Então o passo fica mais pesado, mais no chão. Já estamos traçando nosso caminho na vida. Testaremos enfim nossas armas em adversários de verdade. A régua, o esquadro, o compasso, nós os usaremos para construir o mundo ou para triunfar sobre os inimigos. Acabaram as brincadeiras!
Sei que, normalmente, um colegial não receia enfrentar a vida. Um colegial esperneia de impaciência. Os tormentos, os perigos, as amarguras de uma vida de homem não intimidam um colegial.
Mas eis que sou um colegial esquisito. Sou um colegial que conhece sua felicidade e que não tem tanta pressa de enfrentar a vida…
Dutertre passa. Eu o convido.
Senta aqui, vou te fazer um truque com o baralho…
E fico feliz em achar seu ás de espadas.
À minha frente, em sua carteira, escura como a minha, Dutertre está sentado com as pernas pendentes. Ele ri. Sorrio modestamente. Pénicot se junta a nós e põe o braço no meu ombro:
E então, meu velho?
Meu Deus, como tudo isso é terno!

Um bedel (é um bedel?) abre a porta para convocar dois camaradas. Eles largam suas réguas, compassos e saem. Nós os seguimos com o olhar. O colégio acabou para eles. Vão soltá-los na vida. Sua ciência será aplicada. Eles vão, como homens, testar em seus adversários os resultados de seus cálculos. Estranho colégio, de onde partimos um de cada vez. E sem grandes despedidas. Esses dois camaradas nem mesmo nos olharam. Porém, os acasos da vida talvez os levem — ou não — mais longe do que à China. Bem mais longe. Quando a vida, depois do colégio, dispersa os homens, eles podem jurar que irão se rever?
Curvamos a cabeça, nós que vivemos ainda na paz quente da incubadora…
Escuta, Dutertre, esta noite…
Mas a mesma porta se abre de novo. E ouço, como um veredicto:
O capitão de Saint-Exupéry e o tenente Dutertre, na sala do comandante.
Acabou o colégio. É a vida.
Você sabia que era a nossa vez?
Pénicot voou esta manhã.
Sem dúvida, partiremos em missão, pois estão nos convocando. Estamos no fim de maio, em plena retirada, em pleno desastre. Sacrificam-se tripulações como se jogassem copos d’água no incêndio de uma floresta. Como calcular os riscos quando tudo desmorona? Somos ainda, para toda a França, cinquenta tripulações de Grande Reconhecimento. Cinquenta tripulações de três homens, das quais vinte e três estão conosco, no Grupo 2/33. Em três semanas, perdemos dezessete tripulações dessas vinte e três. Derretemos como cera. Disse ontem ao tenente Gavoille:
A gente vai ver isso depois da guerra.
E o tenente Gavoille me respondeu:
Meu caro Capitão, você também não tem a pretensão de estar vivo depois da guerra?
Gavoille não estava brincando. Nós bem sabemos que nada podemos fazer além de nos atirar no braseiro, mesmo que num gesto inútil. Somos cinquenta, para toda a França. Sobre nossos ombros deposita-se toda a estratégia do Exército francês. Há uma imensa floresta queimando, e alguns copos d’água a sacrificar para apagá-la: vão sacrificá-los.
Está certo. Quem sonha em reclamar?
Por acaso já se ouviu responder outra coisa, no nosso país, senão: “Positivo, Comandante. Obrigado, Comandante”? Mas há uma impressão que domina todas as outras nesse fim de guerra. É a do absurdo. Tudo rui à nossa volta. Tudo desaba. E é tão total que a própria morte parece absurda. Falta seriedade à morte nessa bagunça…
Entramos na sala do comandante Alias. (Ele comanda ainda hoje, na Tunísia, o mesmo Grupo 2/33.)
Bom dia, Saint-Ex. Bom dia, Dutertre. Sentem-se.
Nós nos sentamos. O Comandante abre um mapa sobre sua mesa e volta-se ao guarda:
Vá buscar a previsão meteorológica.
Depois, ele fica batendo na mesa com seu lápis. Eu o observo. Seus traços estão tensos. Não dormiu. Ele fez a patrulha de carro, em busca de um Estado-Maior fantasma, o Estado-Maior da divisão, o Estado-Maior da subdivisão… Tentou lutar contra os postos de abastecimento que não mandavam as peças de reposição. Acabou preso na estrada em engarrafamentos inextricáveis. Também presidiu à última mudança, à última acomodação, pois mudamos de terreno como miseráveis perseguidos por um guardião inexorável. Alias conseguiu salvar, a cada vez, os aviões, os caminhões e dez toneladas de material. Mas nós vemos que ele está no limite de suas forças e de seus nervos.
Bem, é isso…
Ele continua batendo na mesa e não olha para nós.
É muito chato…
Depois, dá de ombros.
É uma missão chata. Mas eles fazem questão, no Estado-Maior. Discuti, mas fazem questão… É assim.
Dutertre e eu olhamos, através da janela, um céu calmo. Ouço cacarejarem as galinhas, pois a sala do comandante fica ao lado de uma fazenda, como a sala de informações fica numa escola. Não oporei o verão, as frutas amadurecendo, os pintinhos ganhando peso, os trigais se erguendo, à morte tão próxima. Não vejo em que a calma do verão contradiga a morte, nem em que a ternura das coisas seja irônica. Mas uma ideia vaga me ocorre: “É um verão que se estraga. Um verão em pane…”. Vi colheitadeiras abandonadas. Vi ceifadores abandonados. Nos buracos das estradas, carros quebrados abandonados. Vilas abandonadas. Uma fonte de uma vila vazia deixava correr sua água. A água pura se transformava em lodo, a mesma que custara tanto trabalho aos homens. De repente, uma imagem absurda me ocorre. A de relógios quebrados. De todos os relógios quebrados. Relógios das igrejas da vila. Relógios das estações de trem. Pêndulos de lareiras das casas vazias. E, nessa placa de relojoeiro fugido, esse ossuário de pêndulos mortos. A guerra… Não se montam mais os pêndulos. Já não se colhem beterrabas. Não se consertam mais os vagões. E a água, que era captada para a sede, ou para alvejar as belas rendas de domingo das camponesas, espalha-se em lama na frente da igreja. E morre-se no verão…
É como se eu tivesse uma doença. Esse médico acaba de me dizer: “É muito chato”. Seria então preciso pensar no tabelião, nos que ficariam. De fato, nós compreendemos, Dutertre e eu, que se trata de uma missão sacrificada:
Em vista das atuais circunstâncias — conclui o comandante — não podemos considerar demais os riscos…
Lógico. “Demais”, não. E ninguém está errado. Nem nós, de nos sentirmos melancólicos. Nem o comandante, de estar constrangido. Nem o Estado-Maior, de dar as ordens. O comandante reclama porque são ordens absurdas. Nós o sabemos, bem como o próprio Estado-Maior. Mas dá ordens porque é preciso dar ordens. Durante uma guerra, um Estado-Maior dá ordens. Ele as confia a belos cavaleiros ou, mais modernos, a motociclistas. Onde reinavam a bagunça e o desespero, cada um desses belos cavaleiros desce de um cavalo fumegante. Ele mostra o Porvir, como a estrela dos Reis Magos. Ele traz a Verdade. E as ordens reconstroem o mundo.
Este é o esquema da guerra. A imaginária na cor da guerra. E cada um se empenha o mais que pode para fazer com que a guerra pareça guerra. Piamente. Cada um se esforça para aplicar bem as regras. Talvez, então, essa guerra trate de parecer-se com uma guerra.
E a fim de fazer com que ela pareça uma guerra é que nós, tripulantes, nos sacrificamos, sem objetivos precisos. Ninguém admite que essa guerra não se parece com nada, que nada faz sentido, que nenhum esquema se adapta e puxam-se gravemente fios que não mais se comunicam com as marionetes. Os Estados-Maiores expedem com convicção ordens que não levarão a lugar algum. Exigem de nós informações que é impossível colher. A aviação não pode assumir a responsabilidade de explicar a guerra aos Estados-Maiores. A aviação, por suas observações, pode controlar hipóteses. Mas não há mais hipóteses. E solicita-se, de fato, a uns cinquenta tripulantes, que modelem um rosto para uma guerra que não o tem. Dirigem-se a nós como a uma tribo de cartomantes. Olho Dutertre, meu observador-cartomante. Ele retrucava, ontem, a um coronel da divisão: “E como eu vou fazer a dez metros do solo, e a quinhentos e trinta quilômetros por hora, para referenciar as posições? Olha, o senhor verá de onde atiram contra o senhor! Se atirarem no senhor, é porque as posições são alemãs”.
Ri muito — concluía Dutertre, depois da discussão.
Pois os soldados franceses nunca viram aviões franceses. Há uns mil destes, disseminados de Dunquerque à Alsácia. Mais certo dizer que estão diluídos no infinito. Assim, quando, no front, um aparelho passa como uma rajada, com certeza é alemão. É tratar de esforçar-se em abatê-lo antes que solte suas bombas. Só o seu ronco já desencadeia as metralhadoras e os canhões de tiro rápido.
Com esse método, acrescentava Dutertre — vão ser muito preciosas as informações deles…
E vamos levá-las em conta porque, num esquema de guerra, deve-se levar informações em conta.
Sim, mas a guerra também está degringolada.
Felizmente — bem sabemos que não vão dar a menor importância às nossas informações. Não conseguiremos transmiti-las. As estradas estarão congestionadas. Os telefones, quebrados. O Estado-Maior terá sido transferido com urgência. As informações importantes sobre a posição do inimigo será o próprio inimigo quem fornecerá. Nós conversávamos, há alguns dias, perto de Laon, sobre a eventual posição das linhas. Enviamos um tenente para fazer contato com o general. No meio do caminho, entre nossa base e a do general, o carro do tenente bateu num rolo compressor atravessado na estrada, atrás do qual estavam dois carros blindados. O tenente deu meia-volta. Mas uma rajada de metralhadora o matou na hora e feriu o chofer. Os blindados são alemães.

No fundo, o Estado-Maior parece um jogador de bridge a quem perguntaríamos, no cômodo ao lado:
O que devo fazer com a minha dama de espadas?
O isolado daria de ombros. Nada tendo visto do jogo, o que responderia?
Mas um Estado-Maior não tem o direito de dar de ombros. Se ele ainda controla alguns elementos, deve fazê-los agir para mantê-los sob controle e para tentar todas as chances enquanto a guerra durar. Mesmo às cegas, ele deve agir e mandar agir.
Mas é difícil atribuir uma função, ao acaso, a uma dama de espadas. Nós já constatamos, primeiro com surpresa, depois como uma evidência que poderíamos ter previsto: quando começa o desabamento, falta trabalho. Consideramos o vencido submerso numa torrente de problemas, desgastando-se inteiramente para resolvê-los, sua infantaria, artilharia, seus tanques, aviões… Mas a derrota primeiro escamoteia os problemas. Nada mais se sabe do jogo. Não se sabe em que empregar os aviões, os tanques, a dama de espadas…
Nós descartamos casualmente a dama de espadas na mesa, depois de quebrar a cabeça para lhe atribuir um papel eficaz. Reina o mal-estar e não a febre. Somente a vitória se envolve na febre. A vitória organiza, a vitória constrói. E cada um se esfalfa para carregar suas pedras.
Mas a derrota mergulha os homens numa atmosfera de incoerência, de tédio e, acima de tudo, de futilidade.
Pois, primeiramente, essas missões exigidas de nós são fúteis… Cada dia mais fúteis. Mais sangrentas e mais fúteis. Os que dão ordens não têm outros recursos para resistir a um deslizamento de montanha, só lhes resta jogar seus últimos trunfos na mesa.
Dutertre e eu somos trunfos e escutamos o comandante. Ele nos expõe o programa da tarde. Manda-nos sobrevoar, a setecentos metros de altitude, os tanques estacionados na região de Arras, na volta de um longo percurso a dez mil metros, com a mesma voz com que nos diria:
Sigam então pela segunda rua à direita, até a esquina da primeira praça; tem lá uma tababaria; comprem-me fósforos…
Positivo, meu Comandante.
Nem mais nem menos útil, a missão. Nem mais nem menos lírica, a linguagem que a significa.
E digo: “Missão sacrificada”. Eu penso… Eu penso muitas coisas. Esperarei a noite, se estiver vivo, para refletir. Vivo… Quando uma missão está fácil, retorna uma a cada três. Quando é um pouco “chata”, fica mais difícil, evidentemente, voltar. E aqui, no gabinete do comandante, a morte não me parece nem augusta nem majestosa, nem heroica nem dilacerante. Ela é apenas um sinal de desordem. Um efeito da desordem. O Grupo vai nos perder, como se perdem bagagens numa confusão de conexões de estradas de ferro.
E não é que não pense sobre a guerra, sobre a morte, sobre o sacrifício, sobre a França, qualquer outra coisa, mas me falta um conceito diretor, uma linguagem clara. Penso por contradições. Minha verdade está em pedaços e só posso considerá-los um após o outro. Se estiver vivo, esperarei a noite para refletir. A noite bem-amada. À noite, a razão dorme, e simplesmente as coisas são. As que importam verdadeiramente retomam sua forma, sobrevivem às destruições das análises do dia. O homem reata seus pedaços e se torna árvore calma.
O dia é das cenas de briga, mas à noite, aquele que brigou reencontra o Amor. Pois o amor é maior do que o sopro das palavras. E o homem se debruça em sua janela, sob as estrelas, de novo responsável pelos filhos que dormem, pelo pão vindouro, pelo sono da esposa que repousa ali, tão frágil, delicada e passageira. O amor não se discute. Ele é. Que venha a noite e se mostre a mim alguma evidência que mereça o amor. Para que eu pense a civilização, o destino do homem, o gosto da amizade no meu país. Para que eu deseje servir a alguma verdade imperiosa, mesmo que, talvez, ainda inexprimível…
Por enquanto, pareço-me inteiramente com o cristão abandonado pela graça. Eu farei meu papel, com Dutertre, honestamente, isso é certo, mas como se salvam ritos que já não têm mais conteúdo, quando o deus se retirou deles. Esperarei a noite, se puder ainda viver, para andar um pouco a pé na grande estrada que atravessa nossa vila, envolvido em minha solidão bem-amada, a fim de nela reconhecer por que eu devo morrer.

Antoine de Saint-Exupéry, in Piloto de Guerra

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