quarta-feira, 26 de abril de 2023

O óbvio ululante

Num encontro social que tive com Nelson Rodrigues, disse-lhe que ia lhe fazer algumas perguntas. Mas que, sendo ele homem de muitas facetas, eu lhe pediria apenas uma: a da verdade. Ele aceitou prontamente e cumpriu. Parecia aliás ansioso para dizer algumas verdades. Eu também ando.
Você se inclina mais para a esquerda ou para a direita?
Eu me recuso absolutamente a ser de esquerda ou de direita. Sou um sujeito que defende ferozmente a sua solidão. Cheguei a essa atitude diante de duas coisas: lendo dois volumes sobre a guerra civil na História. Verifiquei então o óbvio ululante: de parte a parte todos eram canalhas. Rigorosamente todos. Eu não quero ser nem canalha de esquerda nem canalha de direita.
Você se referiu à solidão. Você se sente um homem só?
Do ponto de vista amoroso eu encontrei Lúcia. E é preciso especificar: a grande, a perfeita solidão exige uma companhia ideal. Mas, diante do resto do mundo sou um homem maravilhosamente só. Uma vez fiquei gravemente doente, doente para morrer. Recebi em três meses de agonia três visitas, uma por mês. Note-se que minha doença foi promovida em primeiras páginas de jornais. Aí eu sofri na carne e na alma esta verdade intolerável: o amigo não existe.
Existe sim, Nelson, foi falta de sorte sua. Eu passei quase três meses no hospital e recebia visitas até de estranhos, e eu não sou o que se chama de simpática. Pergunto-me até o que é que eu dei aos outros para que viessem me fazer companhia. Não, não acredito que não se tenha amigos. É que são raros.
Ou eu dou muito pouco ou os outros não aceitam o que eu tenho para dar.
Mas você tem sucesso real – e sucesso vem quando se dá alguma coisa aos outros. Você dá.
Eu tenho o que chamaria de amigos desconhecidos. São sujeitos que eu nunca vi, que cruzam comigo numa esquina, numa retreta, num velório. Certa vez fui a uma capelinha ver um colega morto. Eram duas horas da manhã. Uma mocinha saiu do velório com um caderninho na mão: quero ter a honra de apertar a mão do autor de A vida como ela é, e me pediu o autógrafo. Senti que estava vivendo um momento de pobre ternura humana. Eis o que eu queria dizer: o amigo possível e certo é o desconhecido com quem cruzamos por um instante e nunca mais. A esse podemos amar e por esses podemos ser amados. O trágico na amizade é o dilacerado abismo da convivência.
Mas Hélio Pellegrino é seu amigo, e Otto Lara Resende é seu amigo.
Não. Eu é que sou amigo de ambos. É possível que um de nós ame alguém. O difícil (não quero dizer impossível) é que esse alguém nos ame de volta. Hoje mesmo almocei com Hélio Pellegrino. Por causa de uma opinião minha, ele, com a sua cálida e bela voz de barítono de igreja, dizia para mim: é mentira, é mentira! Nunca me ocorrera nesta encarnação ou em vidas passadas, chamar Hélio Pellegrino de mentiroso. Naquele momento ele pôs entre nós a mais desesperada e radical solidão da terra. Tal agressividade não devia existir na história da amizade. E o Otto nunca me deu um telefonema! Estou dizendo isso com a maior, a mais honrada, a mais inconsolável amargura.
Isso não quer dizer nada: Otto é meu amigo, e já o provou várias vezes, no entanto é raríssimo um telefonema seu. Nelson, você fala em encarnação e em vidas passadas. Você é esotérico? Ou teosofista? Acredita na reencarnação?
Sou apenas cristão, se é que eu o sou. A única coisa que me mantém de pé é a certeza da alma imortal. Recuso-me a reduzir o ser humano à melancolia do cachorro atropelado. Que pulhas seríamos se morrêssemos com a morte.
Mas aonde vai nossa alma, depois de mortos?
Aí está o mistério e o mistério não impede evidentemente que a alma seja imortal. Você antes me perguntou em quantos empregos eu estava escrevendo. Tenho três colunas diárias, obrigatórias (escrevo muito mais para atender a pedidos insuportáveis): num faço duas crônicas e no outro também faço uma crônica de futebol. Quando vou escrever um romance ou uma peça de teatro estou em plena estafa e tenho que fazer um superesforço. Acho que minhas condições de trabalho são desumanas. Eu me considero um fracassado. Não me realizei nem acho que alguém se realize. Mas a coisa mais importante do mundo é o amor, e, para uma pessoa como indivíduo, é a solidão. Sou um romântico num sentido quase caricatural. Acho que todo amor é eterno e, se acaba, não era amor. Para mim, o amor continua além da vida e além da morte. Digo isso a você e sinto que se insinua nas minhas palavras um ridículo irresistível, mas vivo a confessar que o ridículo é uma das minhas dimensões mais válidas.
Nelson, você tem conversado, como todo mundo, com muitas pessoas. Todas as conversas se parecem com essa nossa?
Não, eu estou fazendo um esforço, um abnegado esforço, para não trapacear com você.
É preciso dizer que, durante os minutos que demorou nossa conversa, ele não sorriu nenhuma vez: com a verdade grave não se sorri, parecia dizer.
Você é um homem de sucesso. Até que ponto o sucesso interfere na sua vida pessoal?
Não interfere justamente porque eu e Lúcia fundamos a nossa solidão.
Você está gostando de conversar comigo?
Profundamente. O que conta na vida são os momentos confessionais.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

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