quinta-feira, 30 de março de 2023

Medo

Ilustração: Leya Mira Brander


Era só um garoto. Com pai, mãe, irmão. Mas, quando deu os primeiros passos, apoiando-se nos móveis da casa, sentiu-se só no mundo. Precisava dos outros para ir além de si. E tinha medo. Nem muito nem pouco. Do seu tamanho. Como o uniforme escolar que vestia. No futuro seria um homem, o medo iria se encolher; ou ele, já grande, não se ajustaria mais à sua medida. Por hora, estava ali, naquela manhã fria, indo para a escola, o olhar em névoa, as mãos dentro do bolso da jaqueta. O que o salvava era a mochila presa às costas. O peso dos cadernos e dos livros o curvava, obrigando-o a erguer a cabeça, fazendo-o parecer até um pouco insolente. O que fazer com a sua condição? Apenas levá-la consigo! Andava às pressas, tentando se proteger do vento que, na direção contrária, enregelava seu rosto. Queria aprender urgentemente. Crescer o tornaria maior que o seu medo. E, sem que soubesse, a lição daquele dia o esperava no sorriso de Diego, aluno mais velho, que ele nem conhecia ainda — quase um homem, diriam os pais, a considerar a altura, a penugem do bigode, os braços rijos. Na ignorância das horas por vir — que desejava fossem, senão tranquilas, suportáveis —, o menino passou pelo portão em meio aos outros colegas — vindos também ali para mover a roda da fortuna, antes de serem moídos por ela —, e seguiu pelo pátio até a sua sala. A professora, mulher miúda, de fala doce, o perturbava. Já nas primeiras aulas, percebeu que ela não era só voz leve e olhar compreensivo. A sua paciência, como giz, vivia se quebrando. Por que ela agia daquela maneira? Não sabia. O menino com seu medo, o tempo todo. Na hora da chamada, erguia a mão e abaixava furtivamente a cabeça, como se a sua presença fosse um insulto. Se a professora fazia uma pergunta, antes de respondê-la, escutava a risada de um colega, o sussurro de outro, e então pressentia que iria falhar, o que de fato acontecia: ele, paralisado, sem resposta alguma, sob o olhar da classe inteira. Tropeçava no perigo que ele próprio, e não o mundo, deixava em seu caminho. Queria não ser daquele jeito. Mas era. Às vezes, entristecia-se até nas horas de alegria: quando jogava futebol com o irmão e perdia. Ou, quando, no parque de diversões, se negava a ir na montanha-russa, no chapéu mexicano. Era tudo o que sonhava. Experimentar aqueles abismos. Mas não conseguia. Vai, filho!, a mãe o incentivava. Eu vou com você, o pai prometia. Fitava o irmão que subia no brinquedo, acenava lá de cima, gritava e se divertia, enquanto ele se segurava firme no seu medo, inteiramente fiel. Se vivia inquieto na sala de aula pela certeza de se ver, de repente, numa situação que o intimidaria, às vezes se esquecia de seu desconforto, encantado com o universo que a professora lhe abria, as letras do alfabeto, os desenhos na lousa, um trecho de música que ela cantava, uma graça que fazia. E aí ele ria, ria com sinceridade, e, subitamente, se reencontrava, menino-menino. No intervalo, aquela calma provisória, quando o pátio se inundava de alunos. Na multidão, ninguém o notava, nada tinha a recear, era a sua hora macia. E assim foi até aquela manhã. Pegava seu sanduíche, quando percebeu que um garoto, o maior de todos, se acercava. Espantou-se, ao dar a primeira mordida no pão e ver o outro à sua frente — tão desproporcional se comparado aos demais alunos — o corpo comprido, a voz firme, Eu sou o Diego, e sorrindo, Você é do primeiro ano, não é? Ele confirmou com a cabeça, para não responder de boca cheia. E, logo que o outro disse, Eu nunca te vi aqui!, o menino sentiu que estava diante de um desafio, como se num quarto escuro, o dedo no interruptor pronto para acender a luz. Diego o observava com mais fome nos olhos do que na boca, seguia o movimento de suas mandíbulas, à espera da merecida mordida. Tá bom o sanduíche?, perguntou, e o menino respondeu , e quis saber, Você já comeu o seu?, o que só serviu para alargar a vantagem de Diego, Não, nunca trago lanche, eu sou pobre. O menino perguntou, Quer um pedaço?, pensando que o outro se contentaria com a oferta, nem supunha que o gesto o conduziria mais depressa a seu destino; era uma entrega superior a que ele imaginava. Diego o mirou, satisfeito, e apanhou o pão com voracidade. Sentou-se no chão e se pôs a comer em silêncio, um silêncio faminto que pedia o olhar do mundo — tanto que o menino, ao seu lado, degustou a cena, orgulhoso por lhe saciar a fome. Se antes era frágil, casca de ovo, agora ele se sentia forte. Descobria uma grande vida dentro de si. Porque, antes que continuassem a conversa, ele sabia: fizera um amigo. E Diego, que conhecia melhor essa cartilha, levantou-se e disse agradecido, Se alguém mexer com você, me avise! Com a amizade de Diego, e a sua força a favorecê-lo, ninguém o afrontaria. Imaginava ter um trunfo, mas também podia ser um erro. Como adivinhar? Estava lá para aprender. E aprendeu rápido a lição que Diego lhe deu, na semana seguinte, ao dizer, Minha mãe tá doente, precisa de remédio e a gente não tem dinheiro. O menino — para mostrar que era bom aprendiz — superou a culpa e entregou ao outro, dias depois, umas cédulas que pegara às escondidas da bolsa da mãe. E então começou um tempo em que o perigo era a estabilidade que Diego lhe garantia. Os dois ficavam juntos no intervalo e quase sempre encontravam-se no fim da aula no portão da escola. O amigo o acompanhava até a casa, cumprindo a sua parte no pacto, e recebia em troca o que lhe faltava: o sanduíche, o estojo de lápis coloridos, os pacotes de figurinhas. Diego sorria. E olhava para ele em silêncio no momento da paga — como um aluno que desafia o mestre. O coração do menino batia alto, incapaz de acordar a desconfiança que o embalava. Diego sorria — e sonhava. Sonhava com uma bicicleta. A amizade entre eles atingiu o ápice no dia em que Diego se meteu numa briga, quando outro marmanjo, no intervalo, esbarrou sem querer no garoto e derrubou-lhe a garrafa de suco. Diego vingou o amigo — e foi suspenso da escola por uma semana. O menino viu no episódio a prova de que o outro lhe era plenamente leal. E nem precisou pensar numa recompensa: Diego a cobrou ao retornar às aulas, dizendo que precisava de mais dinheiro para as injeções que a mãe, agora, tinha de tomar. Era a vez do menino, a sua prova. E apesar da angústia, ele mostrou que sabia tudo de gratidão: manteve-se aferrado à sua mentira ao ver o irmão de cabeça baixa, a mãe chorando, o pai de lá para cá à procura do dinheiro que sumira da carteira. E, então, sentado na soleira da porta de casa, dias depois, o garoto viu Diego lá no fim da rua, pedalando uma bicicleta. Diego acenou de longe e, ao se aproximar, abriu um sorriso para o amigo. Ele se ergueu vacilante, apoiando-se na parede. Agora, estava mais sozinho do que nunca. E sentiu medo. Muito medo.

João Anzanello Carrascoza, in Aquela água toda

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