“Sei
que temos esse jantar, não se preocupe, estou vendo se encontro
aquele vestido... Vou a outras lojas, depois... Tchau.”
A
mulher desliga o celular, voltam a se abraçar na cama, esquecem a
vida.
“Esse
coração batendo forte é o meu ou o seu?”
“O
nosso, o suor também é nosso, mas esses fios de cabelo na sua mão
são meus.”
Silêncio.
“Não
fica olhando para o teto, olha para mim.”
O
homem olha para a mulher.
“Estou
muito feliz. Sabe quanto tempo vou ficar feliz?”
Silêncio.
“Até
entrar no meu carro e chegar em casa. Às vezes tenho vontade de me
drogar, mas sou muito medrosa para fazer isso.”
“Não
ia resolver nada.”
“Quando
cheguei em casa ontem ele perguntou, Você foi ao cabeleireiro para
fazer um penteado desses? Inventei uma resposta... Estou andando
sobre carvões em brasa... Você não entende, você sai de casa e
bate a porta, eu tenho que deixar instruções com empregadas, dar
explicações, criar cenários, dizer mentiras, e na volta tudo se
repete, novas determinações, providências, desempenhos, embustes.
O lar é um monstro que nunca tem as suas exigências saciadas, está
sempre pedindo mais. À noite tenho que ir a festas e jantares com
ele e os nossos amigos, onde me mostro alegre, e sou a que ri mais
alto, a que fala com mais entusiasmo, mas quando chego em casa estou
com vontade de vomitar e preciso tomar um tranquilizante para poder
dormir.”
“Eu
te amo.”
“Não
precisa fazer essa cara de cachorro sem dono, esquece o que eu
disse.”
Ela
o beija. Fodem novamente.
“Você
puxa os meus cabelos com força. Você é sádico e maluco. Um pouco
sádico e muito maluco.”
“É
sem querer.”
“Mas
eu gosto, se nós tivéssemos um jogo de dominó você jogaria
comigo?”
“Acho
que sim. Quer ouvir uma música? Aquela de que você gosta.”
“Me
deixa triste. Não fica olhando para o teto.”
“Estou
deitado de barriga para cima.”
“Também
estou deitada de barriga para cima e estou olhando para você. Quer
que eu diga o que estou vendo?”
“Não.”
“E
você, agora que está olhando para mim e o seu pescoço está
doendo, vê o quê?”
“A
mulher mais bonita do mundo.”
“Quer
que eu chore?”
“Não.”
Ela
chora, sem soluçar, mas as lágrimas brilham tanto que ele as vê,
mesmo olhando para o teto.
“Meu
marido está desconfiado.”
“A
vida é um jogo de soma zero.”
“O
que quer dizer isso?”
“Um
jogo em que a soma dos ganhos e das perdas dos jogadores é sempre
zero.”
“E
o que acabamos de ganhar é zero? O que ganhamos todos os dias é
zero?”
“Só
quando formos somar com as perdas, as perdas nunca são zero.”
“Isso
é uma coisa horrível, não é? Olha para mim.”
“Estou
olhando.”
“Você
está com medo. Medo de que eu me mude para cá. De que eu me torne
um peso para você.”
“Não
diga isso.”
“Eu
vivo com medo o tempo todo, mas o meu medo não é maior do que o meu
amor. Diga, o seu medo é maior do que o seu amor?”
“Não
estou com medo.”
“Mas
esse seu medo de eu me mudar para cá só acontece às vezes, se
acontecer sempre, o seu amor vai diminuir. E acaba, é isso?”
“Temos
que ser lúcidos.”
“A
razão sobre os sentimentos, que coisa mais árida, você não
respondeu.”
“Não
sei responder.”
“Você
não sofre por saber que eu, eu...”
“Você?”
“Durmo
toda noite com outro.”
“Prefiro
não falar sobre isso.”
“Você
não sabe fazer nada para ganhar dinheiro, e se formos morar debaixo
da ponte o nosso amor acaba, só podemos viver dentro de um certo
esquema. É isso que você não sabe responder?”
“Já
estive internado. Coisas da cabeça, não é contagioso.”
“Você
nunca me disse isso.”
“Estou
dizendo agora. Já trabalhei numa loja de discos e numa livraria, mas
me mandaram embora.”
“Também
nunca me disse isso.”
“Estou
dizendo agora.”
“Nunca
trabalhei, nem escrevi, nem pintei, nem coisa nenhuma, saí da
faculdade para casar, não terminei o curso, estudava biologia, uma
órfã de pai e mãe estudando biologia, você acredita?”
“O
que uma órfã deve estudar?”
“Talvez
contabilidade, informática. Mas você sofre ou não? Por eu dormir
toda noite com outro.”
“Fico
infeliz.”
“Fica
infeliz mas não chora, eu choro sempre.”
“Minha
mãe não me ensinou a chorar.”
“Ela
já morreu, não morreu? E o que ela dizia? Homem não chora?”
“Ela
não chorava.”
“Mas
tinha um marido e amava outro homem? Um artista, um intelectual
incapaz de ganhar dinheiro com o seu trabalho? Desculpe o
intelectual, sei que você não gosta dessa palavra.”
“Às
vezes, sinto vontade de chorar, quando você vai embora e fico
sozinho, mas não consigo.”
“E
quando a dor é física? Nem assim?”
“Tomo
analgésico. Enxugue o seu rosto com o lençol.”
“Você
não acha que temos que fazer alguma coisa? Ou vamos esperar a vida
corromper os nossos sentimentos?”
“Que
coisa?”
“Já
pensei em me matar, depois de matar você. Pára de olhar para o
teto, não estou brincando.”
“Daqui
a pouco o meu pescoço vai doer.”
“E
eu?”
“Você
o quê?”
“O
que significo para você?”
“Alegria,
deleite, companhia, amor.”
“Mas
a arte é mais importante que tudo... E se quando você morrer de
velho, tudo o que você fez for esquecido, jogado no lixo? Você não
tem coragem nem de cortar a sua orelha.”
“Se
você quiser, eu corto.”
“Então
corta agora.”
Ele
se levanta da cama. Depois de algum tempo, volta com um pano apertado
de encontro à face, sangue escorre do seu pescoço, ele estende a
outra mão fechada para ela, abre a mão. Dentro está a orelha
decepada.
“Um
presente para você.”
“Meu
Deus, você tem que ir para um hospital.”
“Esterilizei
a faca antes e limpei o ferimento com um antisséptico, a hemorragia
passa logo.”
“Sua
mãe, onde quer que ela esteja, deve estar muito orgulhosa de você.”
“Estou
contando com isso.”
“Sabia
que ia ter que cortar uma orelha para mim?”
“Comprei
uma faca afiada.”
“E
eu tenho que fazer o quê, por você?”
“Não
sei, mas não é cortar os pulsos.”
“Acho
que estamos enlouquecendo.”
“Eu
já cheguei no meu ponto. Não passo disso.”
“Posso
te contar uma coisa? Meu analista anda preocupado comigo. Ele não
sabe, mas acho que ainda não cheguei no meu ponto. Tenho que ir
embora. Posso levar a orelha comigo?”
“É
sua, chegando em casa, põe num frasco com formol, a farmácia
vende.”
“Mas
o que eu gostaria mesmo é que você também chorasse.”
“Isso
é mais difícil.”
“Nunca
deixarei de te amar.”
“Nem
eu.”
“Amanhã
é sábado.”
“Eu
sei, a gente não vai se ver, nem no domingo.”
“Talvez
você chore, neste fim de semana.”
“Vou
tentar.”
“Pinta
uns girassóis.”
“Não
sei pintar aqueles girassóis. Talvez se sofresse de glaucoma.”
“Escreve
um soneto.”
“Não
sei escrever sonetos.”
Ela
se veste, percorre o quarto e a sala para ver se não está
esquecendo alguma coisa, abre a porta da rua.
“Soma
zero?”
Fecha
a porta, sai.
Rubem Fonseca, in Pequenas Criaturas
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