Nos
tempos que não sei, pode ser até que ele venha ainda a existir. Das
Cantigas de Serão, de João Barandão, tão apócrifas, surge, com
efeito, uma vez:
Encontrei
Melim-Meloso
fazendo
ideia dos bois:
o
que ele imagina em antes
vira
a certeza depois.
Conto-me,
muito, quando não seja, a simpática história de Melim-Meloso,
filho das serras, intransitivo, deslizado, evadido do azar. Daria
diversidade de estória a primeira-mão de suas governanças; e
aventura. Eis, assim:
Melim-Meloso
amontado
no seu baio:
foi
comprar um chapéu novo,
só
não gosta de trabalho.
Sombra
de verdade, apenas. Ele trabalhava, em termos. E, o que sobre isso
afirma, tira-se no bíblico e raia no evangélico: — Trabalho
não é vergonha, é só uma maldição... Bismarques, o
vendeirão, quis impingir-lhe chapéu antiquíssimo, fora-de-moda,
que ninguém comprava. Melim-Meloso renegou dele, só sorrindo; se o
regateou, foi com supras de amabilidades. Bismarques veio baixando o
preço, até a um quase-nada. Melim-Meloso fechou a compra, botou na
cabeça o chapéu — dando-lhe um arranjo — e o objeto se
transformou, uma beleza, no se ver. Despeitificado, o Bismarques
então abusou de tornar a agravar o preço. Melim-Meloso o refutou,
delicado. Por fim, para não desgostar o outro, falou: concorde.
Pagou, com uma nota nova, se disse ainda agradecido. Mas, em célere
seguida, riu, às claras risadas. O Bismarques, enfiado, remirou a
nota: meditou que ela podia ser falsa. Mas já tinha assumido. Com o
que, Melim-Meloso logo propôs a humildade de aceitar de volta a
nota, desde que com um rebate: que orçava, por acaso, justo no tanto
aumentado depois no preço do chapéu. Bismarques se coçou e
aprovou. Mas, como o ar de lá se tinha amornado, meio sem-ensejo,
Melim-Meloso fez que lembrou, só suave, o talvez: que um copázio de
vinho, pelo seguro, era o que tudo bem espairecia. O Bismarques
serviu o vinho. Somente no encerrar, foi que viu que o convidador se
dava de ser ele mesmo, para a salda das custas. Restou desenxavido;
não mal-alegrado de todo. Melim-Meloso ganhara, às vazas, aquele
chapéu de príncipe.
Ou,
pois:
Melim-Meloso
amontado
no pedrês:
foi
à missa, chegou tarde,
só
desfez o que não fez.
Melim-Meloso
amontado
no murzelo:
uma
nôiva em Santa-Rita,
outra
nôiva no Curvelo.
Melim-Meloso
amontado
no alazão:
— Veio
ver minha senhora,
disto
é que eu não gosto, não.
Duvide-se,
divirja-se, objete-se. Padre Lausdéo, da Conceição-de-Cima, louvou
e premiou Melim-Meloso, naquela domingação. A nôiva de Santa-Rita,
Quirulina, era só por uma amizade emprestada. Maria Roméia, a nôiva
no Curvelo, a ele ensinava apenas certas formas de ingratidão. E a
mulher do Nhô Tampado notava-se como a feia das feias. São estas,
aliás, para mais tarde, estórias de encompridar. Melim-Meloso,
ipso, de si pouco fornecia:
Diz
assim: Melim-Meloso,
não
repete o seu dizer.
Perguntei:
— coisa com coisa,
não
quis nada responder.
Reportava-se:
— Sou homem de todas as palavras! Mas gostava de guardar
segredos; e aproveitava qualquer silêncio. Do mal que dele se dizia,
tenha-se por exagerada, senão de todo inautêntica, à propala, a
parla dessa afamação. O herói nunca foi conquistador, vagabundo,
impostor, nem cigano exibidor de animais. Corra tanta incertidão por
conta dos que tentaram ser inimigos dele: o Cantanha, Reumundo Bode,
o Sem-Caráter, Pedro Pubo, o Alcatruz; o Cagamal e José Me-Seja.
Melim-Meloso, mesmo, é que nunca foi inimigo de ninguém.
Escutem-se, pois, à outra face da lenda, os seus amigos principais:
Cristomiro, o Dandrá, José Infância, João Vero, Padrinho Salomão,
Seo Tau, o Santelmo, Montalvões e Sosiano:
Melim-Meloso
amontado
no quartau:
viaja
para as cabeceiras,
procura
o rio no vau.
Melim-Meloso
amontado
no corcel:
porque
é Melim-Meloso,
bebe
fel e sente o mel.
Melim-Meloso
amontado
no castanho:
— O
que ganho, nunca perco,
o
que perco sempre é ganho…
Diz
assim: Melim-Meloso
só
quer amar sem sofrer.
Errando
sempre, para diante,
um
acerta, sem saber.
Diz
assim: Melim-Meloso
ouve
“não”, sabe que é “sim”:
o
sofrer vigia o gozo,
mas
o gozo não tem fim.
Resumo.
Serra do Sõe, verde em sua neblina, nesse frio fiel, que inclina os
pássaros. Serra do Sõe e Serra da Maria-Pinta, que a redobra;
serras e pessoas. O fazendeiro Pedro Matias, rico. Tio Lirino, com as
sensatas barbas. Elesbão — o estrito boiadeiro. Lá, ressoam
distâncias; e a alegria é pouca: é devagarinho, feito um gole. A
serra faz saudade de outros lugares. Melim-Meloso possuía somente
seus sete cavalos, comprados, um a um, com seus economizados. Seria
para ir-se embora, com luxo, com eles. Melim-Meloso tinha pena de não
ser órfão também do padrasto, com quem descombinava; porque o
padrasto era prático de bronco, na desalegria, não avistava o sutil
de viver, principalmente. Vai, um dia, Melim-Meloso não aguentou
mais: — Faço de conta que este padrasto não existe, de jeito
nenhum... — ele entendeu de obrar, com doçuras. Isto é: não
via mais, nem em frente nem em mente, a pessoa existente do padrasto,
para bem ou para mal. Procedeu. Aí, o padrasto teve a graça de
morrer, subitamente, em paz; mas, deixando dívidas. Melim-Meloso se
disse: — A vida são dívidas. A vida são coisas muito
compridas. Para pagar esses deveres, teve de negociar seus
cavalos, foi dispondo de um por um. Vendia um — chorava (o que
seja: no figuradamente), mas com mágoas medidas. Queria mais ir-se
embora, lá ele corria o risco de ficar mofino; salvava-o sua
incompetência de tristeza. Mas o Elesbão desceu, para o Quipú, com
boiada completada. Pedro Matias desceu, num lençol, na vara,
carregado, para o cemitério-mor, no Adiante. Tio Lirino desceu com a
tropa, tantos lotes de burros: rumo de sertões e ranchos.
Melim-Meloso sentiu-se pronto: — Quando vi — adeus! — minha
gente, vou de arrieiro — no formal…
Episódios.
Mas Melim-Meloso fazia-se muito causador de invejas. Sofrer, até,
ele sofria tão garboso, que lho invejavam. Sofria só sorrisos. Vai,
pois, por qual-o-quê, quiseram vingar-se dele, disso. Os sujeitos
que lhe tinham comprado os cavalos, compareceram na saída, para o
afligir, cada qual montado no agora seu. Mas Melim-Meloso se riu, de
pôr a cabeça para trás. Conforme pensou, tãoforme lhes falou: —
O que vejo, na verdade, é que estes cavalos formosos continuam sendo
meus. Por prova, é que vocês tiveram de trazer todos eles, para os
meus olhos!
No
que se diga, os invejantes não podiam naquilo achar razoável
espécie. Mas, orabolas deles. Melim-Meloso pediu: — Me esperem
amigos, só um pouquinho... Foi, veio, trouxe uma égua, luzente,
quente. Os sete cavalos sendo todos pastores. Relinchou-se! Aí —
que Melim-Meloso soltou de embora a égua: aqueles pulavam e
escoiceavam, rasgalhando rinchos, mordendo o ar, e assim
desembestaram os cavalos equivocados. Jogaram seus cavaleiros no
chão. Só ficou em sela o João Vero, no preto. Os outros se
estragaram um bocado, até um, o pior, o Cantanha, se machucou o
bastante. Melim-Meloso somente sorriu, atencioso. Virou-se para o
João Vero, lhe disse: — Você, se vê: que parece mestre
cavaleiro! Prazido, com essas, o Vero conseguiu então admirar
Melim-Meloso; perguntou: Se ele se ia era por querer uma nôiva,
coberta de ouro-e-prata, feito Dona Sancha? Melim-Meloso respondeu: —
Não. É para, algum dia, tornar a adquirir, um a um estes cavalos...
Com essas, o Vero começou a respeitar a decisão do outro. De
repente, se determinou: ofereceu que cedia desde já o preto a
Melim-Meloso, para ele pagar indenizado, quando possível...
Melim-Meloso, aceitando, gentil, disse: — Você, se vê: que
sabe dar, direito, sem prazo de cobrar. Deus dá é assim... Com
essas, o Vero também se riu, por fora e por dentro. E Melim-Meloso
disse um mais: — Para, em futura ocasião, eu pagar a você a
quantia redonda, você me empresta agora o quebrado que falta, para
poder logo arredondar... O Vero concedeu.
Melim-Meloso
muito se despediu, da terra da Serra, à sua satisfação. Soltou as
rédeas para a Vila, ia levar o caminho até lá. Saiu com os pés na
aurora, à fanfa, seu nariz bem alumiado. Era sujeito a morrer; por
isso, queria antes dar uma vista no mundo, achar a fôrma do seu pé.
Sobre o que, o Vero ainda veio com ele, e com a tropa, por um trecho,
conversavam prezadamente — o Vero conseguira começar a querer-bem
a ele.
E
chegou-se, de caminho, na fazenda Atravessada, antes de chegar-se ao
próprio fim, que era na Conceição-de-Baixo. Nessa fazenda,
reinava, na noite, a furupa de uma grande festa — de casamento ou
batizado. Melim-Meloso apeou lá sem espera de agrados, não
conhecendo ninguém. Ora vez, ali se deram várias coisas, ele com
elas. Porém, são para outra narração; convém que sejam. A vida
de Melim-Meloso nunca se acaba. Ao que, na voz das violas, segundo o
seguinte:
Conte-se
a estória de Melim-Meloso
sempre
sem sossego, sempre com repouso,
vivo
por inteiro, possuindo amor:
Melim-Meloso,
ao vosso dispor…
Guimarães Rosa, in Tutameia
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