quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Minha vez não chegava


Minha vez não chegava. Os dias se sucediam, e minha vez não chegava.
Para matar o tempo, comecei a explorar o palácio — isto é, os locais permitidos, que, fora o próprio harém e seu jardim, eram dois. Um, o pavilhão dos filhos e filhas: centenas de crianças e jovens, ali. De acordo com uma disposição do rei, tinham de ficar separados. Até uma certa idade, a mãe podia cuidar da criança; depois, voltava à sua condição de mulher disponível cem por cento do tempo, e a tarefa de criar os meninos e meninas ficava a cargo de escravos e preceptores. Era um pavilhão enorme, aquele, maior inclusive do que o pavilhão do harém, mas austero, sem nenhuma decoração. Triste ambiente. Tristes eram os olhos postos em mim. Sofriam mais do que eu, aquelas crianças. Pelo menos eu tivera um pai presente. Safado, mas presente. De que adiantava àqueles infelizes serem filhos de um rei poderoso e sábio? De nada. O rei falava com os pássaros, mas não falava com eles. Verdade que não falava porque não tinha tempo, reinar é uma tarefa absorvente, desgastante; mas o resultado final é que se sentiam órfãos. Órfãos, mas não cegos. Certa vez, tentei acariciar o rosto de um garotinho e ele não deixou: não me toca, feia, não me toca. Saí de lá furiosa — e triste: até mesmo a infelicidade triunfava sobre a feiura.
Igualmente deprimente foi a visita ao pavilhão conhecido como Retiro.
Para ali eram levadas as velhas esposas e concubinas — “velha” significando a mulher que chegava à menopausa (pelo menos para isso havia um critério). Eram poucas, as moradoras do Retiro; segundo ouvi de uma escrava, depois que vinham para ali não duravam muito, todo dia enterravam alguma. Agora: nenhuma delas havia sido esposa ou concubina de Salomão, homem relativamente jovem; não, o grupo era uma herança que recebera do pai, o rei Davi, e da qual prometera cuidar, o que fazia até com certa dedicação; nunca vinha ao harém, mas ao Retiro comparecia regularmente. Não para trepar, naturalmente, o que teria inevitável conotação edipiana, mas para conversar, para ouvir histórias de um genitor que — e disso ele próprio não escapava — fora uma figura distante, sempre às voltas com os negócios da Coroa. As velhinhas, contudo, gostavam dessas visitas, que lhes permitiam gratas reminiscências: “Teu pai era um grande fodedor, meu rei. Uma vez ele se apaixonou pela mulher de seu oficial, o hitita Urias...” — e aí Salomão tinha de ouvir pela milésima vez a história de Davi e Betsabá.
Se o clima emocional do harém era de ansiedade, no Retiro predominava a melancolia. Vivemos de lembranças, suspiravam as idosas, e essas lembranças não eram sempre agradáveis. Todas tinham passado ao menos uma vez pelo leito real. Para uma, essa fora uma ocasião gloriosa; para outra, prazenteira; para uma terceira, prazenteira e gloriosa a um tempo. Algumas, verdade que poucas, lembravam o momento com raiva, com tristeza, com decepção; era o caso da mulher que todas ali conheciam como a Virgem Caduca. O problema com ela era exatamente esse, nunca tinha sido desvirginada; os motivos para isso eram obscuros, mesmo porque, sendo muito velha, já não dizia coisa com coisa — daí o apelido.
Mas, sempre que se referia ao assunto, era para se queixar: aqui estou eu, com esse hímen que já virou pedra — quem é que vai fazer alguma coisa por mim? Hímen de pedra, falo de pedra (onde estaria ela, a minha pedra?): aspirações incompreendidas, emoções não extravasadas, desejos não satisfeitos. Estaria a mim reservado o mesmo destino, o da virgindade, associada ou não à caduquice? A velha era velha, mas não tão feia quanto eu. Por que, então, nunca tivera relações? Meu diagnóstico, baseado nas histórias que circulavam a seu respeito, era de frigidez. Parece que Davi tentara alguma coisa, mas fora repelido com veemência, com lições de moral, até — coisa a que Davi era muito sensível, puteado que fora pelo profeta Natã por ter cobiçado (e conseguido) a mulher do próximo.
Não era o meu caso. Frígida eu não era. Felizmente: a ausência de tesão, associada à ausência de beleza, reduziria minhas chances com Salomão a zero, naquele clima de disfarçada mas feroz competição. Felizmente ou infelizmente? Justo por serem tão poucas as minhas possibilidades com o rei, não seria a frigidez uma boa solução, um mal menor que me evitaria um penoso conflito? Questão irrelevante. O negócio é que eu estava apaixonada por Salomão, só pensava nele, tudo o que queria era deitar-me com ele. A perspectiva de não consegui-lo, de morrer sem beijá-lo, sem acariciar seu rosto, sem tocar seu corpo e sem ser por suas mãos tocada (ele me faria vibrar como harpa melodiosa), essa ideia me entristecia, levava-me ao desespero. Mas ao desespero eu não me entregaria, lutaria até o fim. Não era mulher para aceitar resignada esse melancólico destino.
Decidi tomar a iniciativa: não poderia ficar na dependência do acaso, que certamente não me favoreceria. Se Maomé não ia à montanha, a montanha (com sua lúbrica caverna) iria a Salomão.
Para conseguir meu objetivo eu precisaria de ajuda, um auxílio mais eficaz do que o da escrava muda, tão dedicada quanto inútil. Tinha de chegar ao rei. Uma alternativa seria recorrer aos canais informais de comunicação; talvez um cortesão amigo pudesse cochichar ao ouvido do soberano, escuta aqui, Salomão, está na hora de dar uma colher de chá para a feinha, a coitada não dorme à noite pensando em ti, faz essa caridade, Jeová vai te recompensar, isso contará pontos no teu currículo para o Juízo Final.
Mas aí havia dois problemas. Em primeiro lugar, eu não conhecia nenhum cortesão, e mesmo que conhecesse, era de duvidar que ele se dispusesse a interceder; os olhares que os cortesãos me haviam lançado quando de minha chegada ao palácio estavam mais para deboche do que para simpatia. Em segundo lugar, eu não estava atrás de favores, mas sim de direitos.
Queria reivindicar, não implorar. De novo, essa era uma coisa que eu dificilmente faria sozinha. Quem me ajudaria na tarefa? De repente, uma resposta me ocorreu: as mulheres do harém.
Ideia aparentemente absurda. Se estávamos competindo, e estávamos, por que elas se engajariam numa campanha a meu favor? E, mesmo que topassem, que campanha seria essa? Sobre isso pensei muito, caminhando pelos jardins. Pensar, aliás, era uma coisa malvista pela encarregada do harém, que se irritava toda vez que me via vagando, cabisbaixa, pelas aleias. Tu pensas demais, dizia-me, por isso és tão feia, porque as ideias que te ocorrem te fazem franzir a testa e a boca, apertar os olhos, e a tua cara fica cada vez mais marcada; relaxa, te diverte, te ocupa com coisas tolas mas agradáveis, e verás como melhorarás, pelo menos um pouco — o suficiente, talvez, para não assustares mais o rei.
Mas eu não podia parar de pensar, de maquinar coisas. E o que maquinava agora era um plano para mobilizar as mulheres. Para que trabalhassem por mim? Para que me ajudassem a chegar ao leito de Salomão? Sim, mas não apenas isso. De repente, eu queria mais. Queria solidariedade, a verdadeira solidariedade das oprimidas. E contava chegar a isso partilhando com elas, da forma mais sincera e aberta possível, minha angústia. Queria mostrar-lhes que minha virgindade era um pouco a virgindade delas (mostrando que mesmo as descabaçadas continuavam, psicologicamente, socialmente, virgens), que minha marginalização tornava-as também marginais, que minha feiura era também a feiura delas — se não uma feiura externa, pelo menos interna, feiura da tristeza, do desamparo, por aí. Não tínhamos por que competir; ao contrário, só a união nos faria fortes, daria sentido à nossa vida ali no harém.
E como chegar lá? Para tanto, eu tinha planos. Organizaríamos grupos de discussão sobre a situação das mulheres no harém, cada grupo com sua coordenadora e sua relatora; faríamos uma grande plenária; e, baseada nas resoluções da plenária, eu — a única letrada — escreveria a Carta do Harém, um inflamado documento de protesto contra as condições em que vivíamos e que talvez percorresse clandestinamente o mundo, despertando em todos os haréns a consciência das mulheres lá aprisionadas. De pé, vítimas do sexo!, seria o grito de revolta que ecoaria, de Norte a Sul, de Leste a Oeste, que repercutiria nos ouvidos de todos os governantes.
O objetivo final do movimento seria, não acabar com a instituição harém — muitas mulheres nem saberiam viver em liberdade —, mas pelo menos estabelecer uma pauta de direitos. No topo dessa pauta eu colocaria a quota mínima de fodas, a ser determinada cientificamente: depois de estudada a performance sexual de reis e sultões, uma média seria calculada e serviria de parâmetro. Outro detalhe: dentro do conceito de vida sexual democrática, cada mulher teria direito ao mesmo número de noites no leito real. Argumentos tipo meu pai é um monarca muito poderoso, eu mereço mais, não pesariam. Sou mais bonita, tenho mais tesão — nada disso seria aceito. Agora: haveria margem para alguma negociação.
Se uma mulher quisesse passar um ano sem trepar, poderia. Se uma mulher preferisse outra mulher em lugar do rei — tudo bem. Essas ficariam com créditos sexuais, para serem utilizados em outra época ou para serem trocados por outras espécies de gratificação. Dez fodas não utilizadas dariam direito a uma viagem de turismo pelo Mediterrâneo, em navio confortável, com tudo pago. Se o rei estava poupando sua energia sexual, nada mais justo que compensasse aquelas que o beneficiavam.
Enfim: um belo projeto, algo capaz de estabelecer um novo paradigma na relação entre homens e mulheres, ao menos em termos de harém. Agora: estava eu sendo sincera ao formulá-lo ou queria convencer-me de que era uma pessoa generosa, com ampla visão da sociedade e do mundo, uma pessoa capaz de desfraldar ao vento a bandeira da equidade e da justiça? Eu não tinha resposta para essa pergunta. Talvez o movimento fosse apenas disfarce para o meu egoísmo. E daí? Eu era interesseira? Está bom, então eu era interesseira. O mundo é dos que competem, eu me dizia, quem menos corre voa, e eu não vou ficar aqui esperando que aquele rei se disponha a me dar o favor de sua atenção. Por idealismo ou por qualquer outra razão, eu tinha de partir para a briga — esperando, naturalmente, o momento psicológico adequado.
Chegou mais cedo do que eu esperava. Duas semanas se passaram sem que o rei chamasse alguma mulher, o que era raro. A inquietude apossou-se do harém. Antes que os boatos começassem a circular, disseminei — com a ajuda das escravas (até a de língua cortada entrou na dança; era muito boa em mímica) — minha própria versão: o rei teria afirmado na corte estar farto das mulheres do harém, umas incompetentes, de limitadíssimo repertório sexual. Estaria pensando em criar um novo harém, quem sabe em local distante, num paraíso fiscal, por exemplo, o que lhe facilitaria a remessa de dinheiro.
Para minha satisfação, a história pegou. O harém inteiro ficou em pé de guerra. É uma barbaridade, protestavam as mulheres, o cara afirmar uma coisa dessas, quem ele pensa que é, nem mesmo um rei pode nos desprezar dessa maneira, a gente capricha, a gente se embeleza, a gente se esforça, e o cara fica lá, tripudiando, fazendo pouco da gente, contando mentiras para aqueles cortesãos bichas.
Ou seja: minha mensagem se propagara como fogo numa pradaria seca, e agora as chamas da revolta se erguiam, altas, vigorosas. Aproveitei o momento e sugeri uma reunião. As mulheres a quem primeiro falei a respeito mostraram-se receosas: não seria um ato de rebeldia, aquilo? Expliquei que não: tratava-se de uma manifestação ordeira, pacífica, nada teríamos a temer.
Naquela tarde mesmo nos reunimos. O comparecimento foi grande: mais ou menos oitenta por cento das esposas e uns cinquenta por cento das concubinas (estas, por não gozarem de estabilidade, receavam toda contestação). Sabiamente, eu não quis presidir a assembleia; pretendia falar, sim, mas no momento preciso. Os debates e as propostas se sucediam, sem falar nas questões de ordem, porém nada de concreto emergia. Chegou o momento em que as pobres coitadas pareciam ter perdido o rumo: olhavam-se atarantadas, não sabiam o que fazer, o que dizer. É agora, decidi. Rápida como uma cabra da montanha, subi na mureta da pitoresca e murmurante fonte que havia no centro do harém e, em palavras candentes (Deus, eu estava realmente inspirada — nada como a tesão longamente reprimida para fomentar a eloquência), conclamei-as a terminar com aquele abuso.
Chega de sermos tratadas como objetos sexuais! Chega de submissão! Chega de opressão! Respirei fundo e lancei a palavra de ordem: — Por uma completa igualdade de direitos sexuais! De agora em diante o rei terá de receber cada uma de nós! Ressoaram os aplausos. E aí — risco calculado, mas muito bem calculado — joguei minha cartada: — E a primeira serei eu.
Fez-se um silêncio. Tenso silêncio. O que eu via agora, nos rostos à minha frente, era suspeição, não entusiasmo; desconfiança, não fervor revolucionário. E aí veio, lá de trás, formulada por uma magrinha saliente, a pergunta que eu temia, mas que, estava segura, em algum momento seria feita.
Tu? Por que tu? Eu já tinha a resposta preparada.
Porque — respondi — sou a feia. Se o rei me receber, não terá desculpas para não receber nenhuma de vocês.
De novo, fez-se silêncio: muitas ali — nem todas eram brilhantes — tentavam entender o raciocínio. Mas uma morena de olhar desvairado veio em meu socorro.
Isso mesmo! A feia é o teste! Que o rei receba a feia! As mulheres agora pareciam encantadas com a ideia. Em coro, batendo palmas, gritavam: — A feia! A feia! Que durma com a feia! A feia! A feia! Que durma com a feia! A feia? Não. Eu não era a feia. Naquele momento eu não era a feia.
Naquele glorioso momento, naquele transcendente momento, naquele abençoado momento, consegui, por uma fração de segundo, ver-me como se fosse outra pessoa. E o que via era uma mulher de pé sobre uma mureta, punho erguido no ar, cabelos em desalinho, rosto — belo rosto, sim, belo, muito belo, de uma beleza diferente, mas indiscutivelmente belo —, rosto resplandecente... Ah, se aquele momento se eternizasse, se aquela beleza permanecesse para sempre... Poderiam me chamar de feia, sim, mas estariam usando o termo no sentido carinhoso. Querida feia, adorável feia, brava feia, generosa feia. Bela feia.
O êxtase não durou muito. No momento seguinte a encarregada entrava no harém, acompanhada de empregados e dois soldados, furiosa.
Que gritaria é essa, porra? Onde é que vocês pensam que estão, cambada de putas? Pensam que o harém é bordel, pagãs de merda? Foi uma debandada geral. Apesar de meus gritos — resistam, amigas, estamos unidas, não podemos ser vencidas —, fugiam para todos os lados.
Por fim fiquei só eu, sozinha, em cima da mureta.
Desce daí — comandou a mulher.
Não desço. — Eu estava blefando, mas era necessário: estava em jogo o pouco que eu tinha conquistado. Se quisessem usar a força, que usassem: o fato chegaria inevitavelmente ao conhecimento de Salomão, e até serviria como argumento moral em meu favor. Desde que eu saísse inteira dali: com os soldados, nunca se sabia.
Desce, já disse — repetiu ela, mas já não tão segura.
Não desço. Vais ter de me tirar daqui na marra. Mas já vou avisando: não será fácil, hein? Não será fácil. Daqui só saio morta.
A ameaça deve ter lhe soado muito real, porque vacilou. Matar uma esposa de Salomão, mesmo a feia, mesmo a rebelde, podia ser considerado uma falta muito grave. Mudou o tom: — Deixa de bobagem, querida. Desce daí e vamos dar tudo por esquecido.
Deixa de bobagem tu. Daqui só saio para o leito do rei. Enquanto ele não cumprir as obrigações conjugais comigo, nada feito.
Agora a encarregada estava francamente alarmada. Naquele momento, estava hospedada no palácio uma delegação de potentados estrangeiros. O que aconteceria se, por acaso, pedissem para conhecer o harém? O que pensariam vendo uma mulher com cara de louca, imóvel sobre a mureta da fonte, feiura agravada pela expressão feroz? Seria péssimo para a imagem do reino, uma imagem que Salomão cultivava cuidadosamente. Eu teria de ser retirada dali o quanto antes. E, já que ela não poderia me remover numa boa, o jeito era levar o problema ao próprio rei. Um vexame — afinal, como encarregada, supunha-se que devia evitar exatamente isso, que conflitos no harém chegassem ao trono —, mas a alternativa sem dúvida seria pior, mesmo porque àquela altura Salomão provavelmente já estaria informado dos acontecimentos.
Está bem — suspirou —, vou falar com o rei. Mas me faz um favor, desce daí.
Nada disso. Vai lá, fala com ele, e volta aqui. Conforme a reação dele, eu desço. Ou não.
Me olhou com raiva — essa aí, além de feia, é uma mula de tão teimosa — mas foi. E eu fiquei ali, aguardando, as mulheres agora me olhando de longe, em atemorizada expectativa.
Duas horas depois, a encarregada voltou. Exibia agora um sorriso conciliador.
Podes descer. O rei vai te receber esta noite.
Confesso que as pernas me tremeram. Eu tinha vencido, eu conseguira o que queria: o rei ia me receber, o rei ia, enfim, me receber. Mas aquela perspectiva não me deixava feliz, nem mesmo excitada. Ao contrário, eu estava amedrontada, naquele momento eu era apenas uma mocinha feia, muito feia, uma mocinha tímida prestes a ser desvirginada — oh, Deus. Uma vertigem se apossou de mim; antes que eu caísse, a própria encarregada me amparou, me ajudou a descer.
Calma, garota, calma. Não será nada de mais. Tudo dará certo, vais ver. Serás feliz para sempre.
Pequena ironia, que lhe servia de vingança.
Agora vamos, temos muita coisa a fazer: quero banhar-te, maquiar-te.
Assim o rei— Não completou a frase, mas eu sabia o que viria após: assim o rei não te achará tão feia. De novo, a revolta cresceu dentro de mim. Com um safanão, libertei-me.
Deixa-me. Não quero banhar-me nem maquiar-me. Vou assim mesmo, como eu sou.
Mas— — Não tem mas. Feia ou não, o rei vai ter de me aceitar. Se não, volto para a mureta e continuo soltando o berro.
Está bem, está bem, vai assim mesmo — disse ela, mal contendo a raiva.
Mas depois não diz que não te avisei.
E saiu, bufando.
Faltavam algumas horas para o anoitecer. Eu pretendia esperar de pé, mas cansei e acabei sentando-me junto à mureta. O sol completou sua marcha sobre o deserto da Judeia e foi desaparecendo lentamente atrás do horizonte. A tênue, suave luz do crepúsculo invadiu o harém. Algumas mulheres começaram a entoar, num dialeto para mim desconhecido, uma nostálgica melopeia. Exausta dos acontecimentos daquele dia acabei adormecendo. E sonhei: sonhei que estava de novo em minha aldeia, que era criança e que meu pai me estendia os braços, dizendo, com um sorriso, vem, minha bela, vem. E eu corri para ele, ia abraçá-lo, mas nesse momento alguém me sacudiu com energia, com brutalidade até: era a encarregada do harém.
Vamos. Está na hora.
Rudemente despertada, pus-me de pé, ainda atarantada. A mulher me olhou com desgosto.
Estás um lixo, querida. Um verdadeiro lixo. Muito pior do que o habitual. Permite pelo menos que eu te mostre.
Mandou que trouxessem um espelho. Um bom espelho, bem polido, de modo que eu não pudesse ter nenhuma dúvida quanto à minha imagem nele refletida. Imagem que contemplei com receio. E havia razões para isso: a imagem que eu via ali era simplesmente medonha. Deus, como eu estava feia. Cabelos desgrenhados, cara estremunhada de sono — a feiúra multiplicada por dois, no mínimo. Notando que eu estava abalada, a encarregada do harém ainda fez uma tentativa: — Quer que eu chame a maquiadora? Em cinco minutinhos— — Nada disso. — Agora eu não voltaria atrás. — Vamos lá.
Marchamos em direção aos aposentos reais, nossos passos ressoando em uníssono nos corredores vazios. Eu me sentia... Como é mesmo que eu me sentia? Uma condenada. Ali estava eu, escoltada como uma prisioneira...
E era para a noite de núpcias que eu ia. Era para os braços do meu esposo. Incrível.
Finalmente, chegamos. Detivemo-nos diante da grande porta guardada por soldados armados.
Espera aqui — disse a encarregada. Trocou algumas palavras em voz baixa com os guardas. Olharam-me — o assombro em sua expressão era mais do que visível — e abriram a porta. A encarregada introduziu-se por ali. Voltou minutos depois, dizendo que eu podia entrar.
Daqui por diante é tudo contigo — disse-me, num tom de mal disfarçado escárnio. — Vê lá o que vais fazer.
Não respondi. Trêmula, entrei nos aposentos reais. A primeira coisa que vi foi o leito. Imenso, com grandes dosséis de seda, lembrou-me, não sei por que, um navio, coisa que eu nunca tinha visto, mas que imaginava exatamente daquele jeito. Ali estava eu, pois, diante da nau de Salomão.
Qual seria o seu destino? Rumaria para a ilha da Eterna Felicidade, propelida pelo doce vento do amor, ou ficaria perdida no revolto e perigoso mar da Frustração? Eu não saberia dizer. Feias não predizem; feias aceitam o que lhes reserva a sorte.
Salomão não estava ali. Melhor dizendo, estava, mas não no aposento propriamente dito e sim no amplo terraço, do qual se descortinava toda a região, iluminada por fantástica lua. De costas para mim, olhava o horizonte. Em que estaria pensando? Em novas alianças com países distantes, em novas esposas a serem incorporadas ao harém? Ou estaria esperando o obsceno pássaro da noite, para dele obter dicas a respeito da aventura que logo iria viver? Por algum tempo fiquei ali, à espera, olhando aquele altaneiro vulto, aquele largo dorso, aquela bela cabeça.
E aí senti tesão.
Dá para acreditar? Eu, naquela ansiedade tremenda, sem saber o que ia me acontecer, o desejo começou a brotar dentro de mim, foi se tornando mais forte, e eu sentia que a qualquer momento ia pular naquelas costas e beijar aquela nuca... Antes que isso acontecesse, ele se virou. Olhou-me e estremeceu. De novo, estremeceu. Eu devia ter ficado puta da cara, que história é essa de estremecer toda vez que me olha?, mas o resultado foi exatamente o contrário, eu agora estava na ponta dos cascos, por assim dizer, de modo que o fato de ele estremecer só me aumentou o desejo, que chegava a níveis insuportáveis.
Ele suspirou.
Então é hoje — disse, com visível resignação. Talvez para ganhar tempo, resolveu iniciar um papo — mas aí deu-se conta de que não recordava o meu nome, nem quem exatamente eu era. Tive de me identificar; ele — claro, como não me lembrei de ti, és uma figura tão marcante — quis saber como estava meu pai, e a família, e a aldeia; ou seja, estava jogando conversa fora, estava matando tempo, estava desperdiçando energias — e, pior, estava me martirizando, eu que não aguentava mais. Finalmente, indicou a cama.

Tira a roupa, deita, e me aguarda que já venho.

Moacyr Scliar, in A Mulher que escreveu a Bíblia 

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