Minha
vez não chegava. Os dias se sucediam, e minha vez não chegava.
Para
matar o tempo, comecei a explorar o palácio — isto é, os locais
permitidos, que, fora o próprio harém e seu jardim, eram dois. Um,
o pavilhão dos filhos e filhas: centenas de crianças e jovens, ali.
De acordo com uma disposição do rei, tinham de ficar separados. Até
uma certa idade, a mãe podia cuidar da criança; depois, voltava à
sua condição de mulher disponível cem por cento do tempo, e a
tarefa de criar os meninos e meninas ficava a cargo de escravos e
preceptores. Era um pavilhão enorme, aquele, maior inclusive do que
o pavilhão do harém, mas austero, sem nenhuma decoração. Triste
ambiente. Tristes eram os olhos postos em mim. Sofriam mais do que
eu, aquelas crianças. Pelo menos eu tivera um pai presente. Safado,
mas presente. De que adiantava àqueles infelizes serem filhos de um
rei poderoso e sábio? De nada. O rei falava com os pássaros, mas
não falava com eles. Verdade que não falava porque não tinha
tempo, reinar é uma tarefa absorvente, desgastante; mas o resultado
final é que se sentiam órfãos. Órfãos, mas não cegos. Certa
vez, tentei acariciar o rosto de um garotinho e ele não deixou: não
me toca, feia, não me toca. Saí de lá furiosa — e triste: até
mesmo a infelicidade triunfava sobre a feiura.
Igualmente
deprimente foi a visita ao pavilhão conhecido como Retiro.
Para
ali eram levadas as velhas esposas e concubinas — “velha”
significando a mulher que chegava à menopausa (pelo menos para isso
havia um critério). Eram poucas, as moradoras do Retiro; segundo
ouvi de uma escrava, depois que vinham para ali não duravam muito,
todo dia enterravam alguma. Agora: nenhuma delas havia sido esposa ou
concubina de Salomão, homem relativamente jovem; não, o grupo era
uma herança que recebera do pai, o rei Davi, e da qual prometera
cuidar, o que fazia até com certa dedicação; nunca vinha ao harém,
mas ao Retiro comparecia regularmente. Não para trepar,
naturalmente, o que teria inevitável conotação edipiana, mas para
conversar, para ouvir histórias de um genitor que — e disso ele
próprio não escapava — fora uma figura distante, sempre às
voltas com os negócios da Coroa. As velhinhas, contudo, gostavam
dessas visitas, que lhes permitiam gratas reminiscências: “Teu pai
era um grande fodedor, meu rei. Uma vez ele se apaixonou pela mulher
de seu oficial, o hitita Urias...” — e aí Salomão tinha de
ouvir pela milésima vez a história de Davi e Betsabá.
Se
o clima emocional do harém era de ansiedade, no Retiro predominava a
melancolia. Vivemos de lembranças, suspiravam as idosas, e essas
lembranças não eram sempre agradáveis. Todas tinham passado ao
menos uma vez pelo leito real. Para uma, essa fora uma ocasião
gloriosa; para outra, prazenteira; para uma terceira, prazenteira e
gloriosa a um tempo. Algumas, verdade que poucas, lembravam o momento
com raiva, com tristeza, com decepção; era o caso da mulher que
todas ali conheciam como a Virgem Caduca. O problema com ela era
exatamente esse, nunca tinha sido desvirginada; os motivos para isso
eram obscuros, mesmo porque, sendo muito velha, já não dizia coisa
com coisa — daí o apelido.
Mas,
sempre que se referia ao assunto, era para se queixar: aqui estou eu,
com esse hímen que já virou pedra — quem é que vai fazer alguma
coisa por mim? Hímen de pedra, falo de pedra (onde estaria ela, a
minha pedra?): aspirações incompreendidas, emoções não
extravasadas, desejos não satisfeitos. Estaria a mim reservado o
mesmo destino, o da virgindade, associada ou não à caduquice? A
velha era velha, mas não tão feia quanto eu. Por que, então, nunca
tivera relações? Meu diagnóstico, baseado nas histórias que
circulavam a seu respeito, era de frigidez. Parece que Davi tentara
alguma coisa, mas fora repelido com veemência, com lições de
moral, até — coisa a que Davi era muito sensível, puteado que
fora pelo profeta Natã por ter cobiçado (e conseguido) a mulher do
próximo.
Não
era o meu caso. Frígida eu não era. Felizmente: a ausência de
tesão, associada à ausência de beleza, reduziria minhas chances
com Salomão a zero, naquele clima de disfarçada mas feroz
competição. Felizmente ou infelizmente? Justo por serem tão poucas
as minhas possibilidades com o rei, não seria a frigidez uma boa
solução, um mal menor que me evitaria um penoso conflito? Questão
irrelevante. O negócio é que eu estava apaixonada por Salomão, só
pensava nele, tudo o que queria era deitar-me com ele. A perspectiva
de não consegui-lo, de morrer sem beijá-lo, sem acariciar seu
rosto, sem tocar seu corpo e sem ser por suas mãos tocada (ele me
faria vibrar como harpa melodiosa), essa ideia me entristecia,
levava-me ao desespero. Mas ao desespero eu não me entregaria,
lutaria até o fim. Não era mulher para aceitar resignada esse
melancólico destino.
Decidi
tomar a iniciativa: não poderia ficar na dependência do acaso, que
certamente não me favoreceria. Se Maomé não ia à montanha, a
montanha (com sua lúbrica caverna) iria a Salomão.
Para
conseguir meu objetivo eu precisaria de ajuda, um auxílio mais
eficaz do que o da escrava muda, tão dedicada quanto inútil. Tinha
de chegar ao rei. Uma alternativa seria recorrer aos canais informais
de comunicação; talvez um cortesão amigo pudesse cochichar ao
ouvido do soberano, escuta aqui, Salomão, está na hora de dar uma
colher de chá para a feinha, a coitada não dorme à noite pensando
em ti, faz essa caridade, Jeová vai te recompensar, isso contará
pontos no teu currículo para o Juízo Final.
Mas
aí havia dois problemas. Em primeiro lugar, eu não conhecia nenhum
cortesão, e mesmo que conhecesse, era de duvidar que ele se
dispusesse a interceder; os olhares que os cortesãos me haviam
lançado quando de minha chegada ao palácio estavam mais para
deboche do que para simpatia. Em segundo lugar, eu não estava atrás
de favores, mas sim de direitos.
Queria
reivindicar, não implorar. De novo, essa era uma coisa que eu
dificilmente faria sozinha. Quem me ajudaria na tarefa? De repente,
uma resposta me ocorreu: as mulheres do harém.
Ideia
aparentemente absurda. Se estávamos competindo, e estávamos, por
que elas se engajariam numa campanha a meu favor? E, mesmo que
topassem, que campanha seria essa? Sobre isso pensei muito,
caminhando pelos jardins. Pensar, aliás, era uma coisa malvista pela
encarregada do harém, que se irritava toda vez que me via vagando,
cabisbaixa, pelas aleias. Tu pensas demais, dizia-me, por isso és
tão feia, porque as ideias que te ocorrem te fazem franzir a testa e
a boca, apertar os olhos, e a tua cara fica cada vez mais marcada;
relaxa, te diverte, te ocupa com coisas tolas mas agradáveis, e
verás como melhorarás, pelo menos um pouco — o suficiente,
talvez, para não assustares mais o rei.
Mas
eu não podia parar de pensar, de maquinar coisas. E o que maquinava
agora era um plano para mobilizar as mulheres. Para que trabalhassem
por mim? Para que me ajudassem a chegar ao leito de Salomão? Sim,
mas não apenas isso. De repente, eu queria mais. Queria
solidariedade, a verdadeira solidariedade das oprimidas. E contava
chegar a isso partilhando com elas, da forma mais sincera e aberta
possível, minha angústia. Queria mostrar-lhes que minha virgindade
era um pouco a virgindade delas (mostrando que mesmo as descabaçadas
continuavam, psicologicamente, socialmente, virgens), que minha
marginalização tornava-as também marginais, que minha feiura era
também a feiura delas — se não uma feiura externa, pelo menos
interna, feiura da tristeza, do desamparo, por aí. Não tínhamos
por que competir; ao contrário, só a união nos faria fortes, daria
sentido à nossa vida ali no harém.
E
como chegar lá? Para tanto, eu tinha planos. Organizaríamos grupos
de discussão sobre a situação das mulheres no harém, cada grupo
com sua coordenadora e sua relatora; faríamos uma grande plenária;
e, baseada nas resoluções da plenária, eu — a única letrada —
escreveria a Carta do Harém, um inflamado documento de protesto
contra as condições em que vivíamos e que talvez percorresse
clandestinamente o mundo, despertando em todos os haréns a
consciência das mulheres lá aprisionadas. De pé, vítimas do
sexo!, seria o grito de revolta que ecoaria, de Norte a Sul, de Leste
a Oeste, que repercutiria nos ouvidos de todos os governantes.
O
objetivo final do movimento seria, não acabar com a instituição
harém — muitas mulheres nem saberiam viver em liberdade —, mas
pelo menos estabelecer uma pauta de direitos. No topo dessa pauta eu
colocaria a quota mínima de fodas, a ser determinada
cientificamente: depois de estudada a performance sexual de reis e
sultões, uma média seria calculada e serviria de parâmetro. Outro
detalhe: dentro do conceito de vida sexual democrática, cada mulher
teria direito ao mesmo número de noites no leito real. Argumentos
tipo meu pai é um monarca muito poderoso, eu mereço mais, não
pesariam. Sou mais bonita, tenho mais tesão — nada disso seria
aceito. Agora: haveria margem para alguma negociação.
Se
uma mulher quisesse passar um ano sem trepar, poderia. Se uma mulher
preferisse outra mulher em lugar do rei — tudo bem. Essas ficariam
com créditos sexuais, para serem utilizados em outra época ou para
serem trocados por outras espécies de gratificação. Dez fodas não
utilizadas dariam direito a uma viagem de turismo pelo Mediterrâneo,
em navio confortável, com tudo pago. Se o rei estava poupando sua
energia sexual, nada mais justo que compensasse aquelas que o
beneficiavam.
Enfim:
um belo projeto, algo capaz de estabelecer um novo paradigma na
relação entre homens e mulheres, ao menos em termos de harém.
Agora: estava eu sendo sincera ao formulá-lo ou queria convencer-me
de que era uma pessoa generosa, com ampla visão da sociedade e do
mundo, uma pessoa capaz de desfraldar ao vento a bandeira da equidade
e da justiça? Eu não tinha resposta para essa pergunta. Talvez o
movimento fosse apenas disfarce para o meu egoísmo. E daí? Eu era
interesseira? Está bom, então eu era interesseira. O mundo é dos
que competem, eu me dizia, quem menos corre voa, e eu não vou ficar
aqui esperando que aquele rei se disponha a me dar o favor de sua
atenção. Por idealismo ou por qualquer outra razão, eu tinha de
partir para a briga — esperando, naturalmente, o momento
psicológico adequado.
Chegou
mais cedo do que eu esperava. Duas semanas se passaram sem que o rei
chamasse alguma mulher, o que era raro. A inquietude apossou-se do
harém. Antes que os boatos começassem a circular, disseminei —
com a ajuda das escravas (até a de língua cortada entrou na dança;
era muito boa em mímica) — minha própria versão: o rei teria
afirmado na corte estar farto das mulheres do harém, umas
incompetentes, de limitadíssimo repertório sexual. Estaria pensando
em criar um novo harém, quem sabe em local distante, num paraíso
fiscal, por exemplo, o que lhe facilitaria a remessa de dinheiro.
Para
minha satisfação, a história pegou. O harém inteiro ficou em pé
de guerra. É uma barbaridade, protestavam as mulheres, o cara
afirmar uma coisa dessas, quem ele pensa que é, nem mesmo um rei
pode nos desprezar dessa maneira, a gente capricha, a gente se
embeleza, a gente se esforça, e o cara fica lá, tripudiando,
fazendo pouco da gente, contando mentiras para aqueles cortesãos
bichas.
Ou
seja: minha mensagem se propagara como fogo numa pradaria seca, e
agora as chamas da revolta se erguiam, altas, vigorosas. Aproveitei o
momento e sugeri uma reunião. As mulheres a quem primeiro falei a
respeito mostraram-se receosas: não seria um ato de rebeldia,
aquilo? Expliquei que não: tratava-se de uma manifestação ordeira,
pacífica, nada teríamos a temer.
Naquela
tarde mesmo nos reunimos. O comparecimento foi grande: mais ou menos
oitenta por cento das esposas e uns cinquenta por cento das
concubinas (estas, por não gozarem de estabilidade, receavam toda
contestação). Sabiamente, eu não quis presidir a assembleia;
pretendia falar, sim, mas no momento preciso. Os debates e as
propostas se sucediam, sem falar nas questões de ordem, porém nada
de concreto emergia. Chegou o momento em que as pobres coitadas
pareciam ter perdido o rumo: olhavam-se atarantadas, não sabiam o
que fazer, o que dizer. É agora, decidi. Rápida como uma cabra da
montanha, subi na mureta da pitoresca e murmurante fonte que havia no
centro do harém e, em palavras candentes (Deus, eu estava realmente
inspirada — nada como a tesão longamente reprimida para fomentar a
eloquência), conclamei-as a terminar com aquele abuso.
— Chega
de sermos tratadas como objetos sexuais! Chega de submissão! Chega
de opressão! Respirei fundo e lancei a palavra de ordem: — Por uma
completa igualdade de direitos sexuais! De agora em diante o rei terá
de receber cada uma de nós! Ressoaram os aplausos. E aí — risco
calculado, mas muito bem calculado — joguei minha cartada: — E a
primeira serei eu.
Fez-se
um silêncio. Tenso silêncio. O que eu via agora, nos rostos à
minha frente, era suspeição, não entusiasmo; desconfiança, não
fervor revolucionário. E aí veio, lá de trás, formulada por uma
magrinha saliente, a pergunta que eu temia, mas que, estava segura,
em algum momento seria feita.
— Tu?
Por que tu? Eu já tinha a resposta preparada.
— Porque
— respondi — sou a feia. Se o rei me receber, não terá
desculpas para não receber nenhuma de vocês.
De
novo, fez-se silêncio: muitas ali — nem todas eram brilhantes —
tentavam entender o raciocínio. Mas uma morena de olhar desvairado
veio em meu socorro.
— Isso
mesmo! A feia é o teste! Que o rei receba a feia! As mulheres agora
pareciam encantadas com a ideia. Em coro, batendo palmas, gritavam: —
A feia! A feia! Que durma com a feia! A feia! A feia! Que durma com a
feia! A feia? Não. Eu não era a feia. Naquele momento eu não era a
feia.
Naquele
glorioso momento, naquele transcendente momento, naquele abençoado
momento, consegui, por uma fração de segundo, ver-me como se fosse
outra pessoa. E o que via era uma mulher de pé sobre uma mureta,
punho erguido no ar, cabelos em desalinho, rosto — belo rosto, sim,
belo, muito belo, de uma beleza diferente, mas indiscutivelmente belo
—, rosto resplandecente... Ah, se aquele momento se eternizasse, se
aquela beleza permanecesse para sempre... Poderiam me chamar de feia,
sim, mas estariam usando o termo no sentido carinhoso. Querida feia,
adorável feia, brava feia, generosa feia. Bela feia.
O
êxtase não durou muito. No momento seguinte a encarregada entrava
no harém, acompanhada de empregados e dois soldados, furiosa.
— Que
gritaria é essa, porra? Onde é que vocês pensam que estão,
cambada de putas? Pensam que o harém é bordel, pagãs de merda? Foi
uma debandada geral. Apesar de meus gritos — resistam, amigas,
estamos unidas, não podemos ser vencidas —, fugiam para todos os
lados.
Por
fim fiquei só eu, sozinha, em cima da mureta.
— Desce
daí — comandou a mulher.
— Não
desço. — Eu estava blefando, mas era necessário: estava em jogo o
pouco que eu tinha conquistado. Se quisessem usar a força, que
usassem: o fato chegaria inevitavelmente ao conhecimento de Salomão,
e até serviria como argumento moral em meu favor. Desde que eu
saísse inteira dali: com os soldados, nunca se sabia.
— Desce,
já disse — repetiu ela, mas já não tão segura.
— Não
desço. Vais ter de me tirar daqui na marra. Mas já vou avisando:
não será fácil, hein? Não será fácil. Daqui só saio morta.
A
ameaça deve ter lhe soado muito real, porque vacilou. Matar uma
esposa de Salomão, mesmo a feia, mesmo a rebelde, podia ser
considerado uma falta muito grave. Mudou o tom: — Deixa de bobagem,
querida. Desce daí e vamos dar tudo por esquecido.
— Deixa
de bobagem tu. Daqui só saio para o leito do rei. Enquanto ele não
cumprir as obrigações conjugais comigo, nada feito.
Agora
a encarregada estava francamente alarmada. Naquele momento, estava
hospedada no palácio uma delegação de potentados estrangeiros. O
que aconteceria se, por acaso, pedissem para conhecer o harém? O que
pensariam vendo uma mulher com cara de louca, imóvel sobre a mureta
da fonte, feiura agravada pela expressão feroz? Seria péssimo para
a imagem do reino, uma imagem que Salomão cultivava cuidadosamente.
Eu teria de ser retirada dali o quanto antes. E, já que ela não
poderia me remover numa boa, o jeito era levar o problema ao próprio
rei. Um vexame — afinal, como encarregada, supunha-se que devia
evitar exatamente isso, que conflitos no harém chegassem ao trono —,
mas a alternativa sem dúvida seria pior, mesmo porque àquela altura
Salomão provavelmente já estaria informado dos acontecimentos.
— Está
bem — suspirou —, vou falar com o rei. Mas me faz um favor, desce
daí.
— Nada
disso. Vai lá, fala com ele, e volta aqui. Conforme a reação dele,
eu desço. Ou não.
Me
olhou com raiva — essa aí, além de feia, é uma mula de tão
teimosa — mas foi. E eu fiquei ali, aguardando, as mulheres agora
me olhando de longe, em atemorizada expectativa.
Duas
horas depois, a encarregada voltou. Exibia agora um sorriso
conciliador.
— Podes
descer. O rei vai te receber esta noite.
Confesso
que as pernas me tremeram. Eu tinha vencido, eu conseguira o que
queria: o rei ia me receber, o rei ia, enfim, me receber. Mas aquela
perspectiva não me deixava feliz, nem mesmo excitada. Ao contrário,
eu estava amedrontada, naquele momento eu era apenas uma mocinha
feia, muito feia, uma mocinha tímida prestes a ser desvirginada —
oh, Deus. Uma vertigem se apossou de mim; antes que eu caísse, a
própria encarregada me amparou, me ajudou a descer.
— Calma,
garota, calma. Não será nada de mais. Tudo dará certo, vais ver.
Serás feliz para sempre.
Pequena
ironia, que lhe servia de vingança.
— Agora
vamos, temos muita coisa a fazer: quero banhar-te, maquiar-te.
Assim
o rei— Não completou a frase, mas eu sabia o que viria após:
assim o rei não te achará tão feia. De novo, a revolta cresceu
dentro de mim. Com um safanão, libertei-me.
— Deixa-me.
Não quero banhar-me nem maquiar-me. Vou assim mesmo, como eu sou.
— Mas—
— Não tem mas. Feia ou não, o rei vai ter de me aceitar. Se não,
volto para a mureta e continuo soltando o berro.
— Está
bem, está bem, vai assim mesmo — disse ela, mal contendo a raiva.
— Mas
depois não diz que não te avisei.
E
saiu, bufando.
Faltavam
algumas horas para o anoitecer. Eu pretendia esperar de pé, mas
cansei e acabei sentando-me junto à mureta. O sol completou sua
marcha sobre o deserto da Judeia e foi desaparecendo lentamente atrás
do horizonte. A tênue, suave luz do crepúsculo invadiu o harém.
Algumas mulheres começaram a entoar, num dialeto para mim
desconhecido, uma nostálgica melopeia. Exausta dos acontecimentos
daquele dia acabei adormecendo. E sonhei: sonhei que estava de novo
em minha aldeia, que era criança e que meu pai me estendia os
braços, dizendo, com um sorriso, vem, minha bela, vem. E eu corri
para ele, ia abraçá-lo, mas nesse momento alguém me sacudiu com
energia, com brutalidade até: era a encarregada do harém.
— Vamos.
Está na hora.
Rudemente
despertada, pus-me de pé, ainda atarantada. A mulher me olhou com
desgosto.
— Estás
um lixo, querida. Um verdadeiro lixo. Muito pior do que o habitual.
Permite pelo menos que eu te mostre.
Mandou
que trouxessem um espelho. Um bom espelho, bem polido, de modo que eu
não pudesse ter nenhuma dúvida quanto à minha imagem nele
refletida. Imagem que contemplei com receio. E havia razões para
isso: a imagem que eu via ali era simplesmente medonha. Deus, como eu
estava feia. Cabelos desgrenhados, cara estremunhada de sono — a
feiúra multiplicada por dois, no mínimo. Notando que eu estava
abalada, a encarregada do harém ainda fez uma tentativa: — Quer
que eu chame a maquiadora? Em cinco minutinhos— — Nada disso. —
Agora eu não voltaria atrás. — Vamos lá.
Marchamos
em direção aos aposentos reais, nossos passos ressoando em uníssono
nos corredores vazios. Eu me sentia... Como é mesmo que eu me
sentia? Uma condenada. Ali estava eu, escoltada como uma
prisioneira...
E
era para a noite de núpcias que eu ia. Era para os braços do meu
esposo. Incrível.
Finalmente,
chegamos. Detivemo-nos diante da grande porta guardada por soldados
armados.
— Espera
aqui — disse a encarregada. Trocou algumas palavras em voz baixa
com os guardas. Olharam-me — o assombro em sua expressão era mais
do que visível — e abriram a porta. A encarregada introduziu-se
por ali. Voltou minutos depois, dizendo que eu podia entrar.
— Daqui
por diante é tudo contigo — disse-me, num tom de mal disfarçado
escárnio. — Vê lá o que vais fazer.
Não
respondi. Trêmula, entrei nos aposentos reais. A primeira coisa que
vi foi o leito. Imenso, com grandes dosséis de seda, lembrou-me, não
sei por que, um navio, coisa que eu nunca tinha visto, mas que
imaginava exatamente daquele jeito. Ali estava eu, pois, diante da
nau de Salomão.
Qual
seria o seu destino? Rumaria para a ilha da Eterna Felicidade,
propelida pelo doce vento do amor, ou ficaria perdida no revolto e
perigoso mar da Frustração? Eu não saberia dizer. Feias não
predizem; feias aceitam o que lhes reserva a sorte.
Salomão
não estava ali. Melhor dizendo, estava, mas não no aposento
propriamente dito e sim no amplo terraço, do qual se descortinava
toda a região, iluminada por fantástica lua. De costas para mim,
olhava o horizonte. Em que estaria pensando? Em novas alianças com
países distantes, em novas esposas a serem incorporadas ao harém?
Ou estaria esperando o obsceno pássaro da noite, para dele obter
dicas a respeito da aventura que logo iria viver? Por algum tempo
fiquei ali, à espera, olhando aquele altaneiro vulto, aquele largo
dorso, aquela bela cabeça.
E
aí senti tesão.
Dá
para acreditar? Eu, naquela ansiedade tremenda, sem saber o que ia me
acontecer, o desejo começou a brotar dentro de mim, foi se tornando
mais forte, e eu sentia que a qualquer momento ia pular naquelas
costas e beijar aquela nuca... Antes que isso acontecesse, ele se
virou. Olhou-me e estremeceu. De novo, estremeceu. Eu devia ter
ficado puta da cara, que história é essa de estremecer toda vez que
me olha?, mas o resultado foi exatamente o contrário, eu agora
estava na ponta dos cascos, por assim dizer, de modo que o fato de
ele estremecer só me aumentou o desejo, que chegava a níveis
insuportáveis.
Ele
suspirou.
— Então
é hoje — disse, com visível resignação. Talvez para ganhar
tempo, resolveu iniciar um papo — mas aí deu-se conta de que não
recordava o meu nome, nem quem exatamente eu era. Tive de me
identificar; ele — claro, como não me lembrei de ti, és uma
figura tão marcante — quis saber como estava meu pai, e a família,
e a aldeia; ou seja, estava jogando conversa fora, estava matando
tempo, estava desperdiçando energias — e, pior, estava me
martirizando, eu que não aguentava mais. Finalmente, indicou a cama.
— Tira a roupa, deita, e me aguarda que já venho.
Moacyr Scliar, in A Mulher que escreveu a Bíblia
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