quinta-feira, 30 de junho de 2022

Paixão


Encolhida no chão, você parece uma trouxa que algum mendigo largou aí, sem temer que o roubassem porque não há nada de valor nesse saco sujo. É você. O pó que se levanta das sandálias da multidão — a multidão que corre para ver o espetáculo — cobre-a por completo. Sua boca está cheia de areia e uma pedra pontiaguda é cravada em seu esterno. Alguém a pisoteia. Você continua imóvel. Um cachorro faminto, selvagem, vem cheirá-la. Você continua imóvel. Você pensa em veneno, em raízes amargas assassinas, nas presas afiadas das serpentes do deserto que tantas vezes você segurou, pensa em acabar com tudo rápido.
Você sabe, a única coisa que sabe, é que não poderá viver sem ele. O que não sabe, e nunca saberá, é se ele a amou. Isso é algo que só sabe quem foi amado algum dia. Você não é uma dessas pessoas. Sua mãe foi embora deixando-a catarrenta, magra e nua. Um animalzinho molhado na porta da casa de seus avós.
Ela foi embora procurar homens, diziam eles, dizia a gente da aldeia cobrindo o canto da boca. Usavam para falar dela essa palavra que depois, não muito mais tarde, foi sua, coube em você como um vestido justo, contagiou-a como uma doença.
Você não sabe, também, que sua mãe queria que você se salvasse dela, disso que você herdou e que se parece tanto com uma graça quanto com uma maldição.
A primeira profecia que você cumpriu foi a de “você é igual à sua mãe”. Batiam em você para que não fosse igual à sua mãe enquanto gritavam você é igual à sua mãe. Certa noite, por volta dos seus doze, treze anos, você se atrasou na volta de sua ocupação favorita: recolher raízes, ervas e flores para depois, em casa, fervê-las, amassá-las, misturá-las e ver o que acontecia. Você voltou correndo com o alforje cheio, levantando poeira com suas sandálias, sujando a barra da saia e as pessoas, ao verem-na passar toda suada, ofegando, balançavam a cabeça como dizendo “pobrezinha”, como dizendo “outra como a mãe”.
Ela, sua avó, ele, seu avô, lhe bateram tanto que você perdeu para sempre a audição do ouvido direito e agora manca de uma das pernas. Com uma vara de loureiro — aquela vara de loureiro — rasgaram suas costas, as nádegas, o peito diminuto, até deixar tiras de pele penduradas, como uma laranja meio descascada.
Gritavam, gritavam, e açoitavam, açoitavam. À luz do fogo, suas sombras pareciam gigantes furiosos. Você fechou os olhos. Você se enrodilhou no chão, apertou a pedra cinza que sua mãe atara ao seu pescoço e disse para si mesma “que eles me matem, ou então vão ver”.
Mas eles não te mataram.
Você despertou de madrugada quase se afogando com seu próprio sangue. Você cuspiu, vomitou e, com uma dor agonizante, conseguiu se erguer. Devagar, muito devagar, cobriu com um de seus emplastros cada ferida e as envolveu com panos. Você foi até seu alforje, procurou um recipiente e ali, no escuro, misturou com o almofariz várias ervas e raízes, acrescentou algumas gotas de um líquido que brilhou — amarelo — à luz da lua. Seus olhos, também amarelos, se iluminaram como os de um gato.
Isso ninguém viu.
Você pôs o recipiente com a mistura no fogo, sussurrou algumas palavras — que soaram como um cântico, uma reza, um feitiço —, cobriu com a palma da mão sua pedra cinza, pegou suas coisas e foi embora dali.
Quando encontraram seus avós, eles estavam secos, desidratados, esticados como as cobras ocas que às vezes aparecem nas veredas.
Diziam, aqueles que os encontraram, que estavam marrons e que tinham os olhos saltados das órbitas e as mandíbulas inumanamente abertas.
Diziam, aqueles que os encontraram, que pareciam ter morrido de terror.
Seu paradeiro se perdeu durante muitos anos. Mais uma menina perdida num mundo de meninas perdidas. Alguns diziam que você havia se unido aos nômades e percorria as aldeias dançando e mostrando os peitos por algumas moedas. Outros asseguravam que você tinha matado uns homens que queriam roubar o pingente — a pedra — de sua mãe. Outros ainda estavam convencidos de que você havia morrido leprosa, destroçada e sozinha. Que alguém que conhecia alguém que conhecia alguém a tinha visto agonizante num leprosário, trancada numa masmorra com outros assassinos, dançando sem roupa diante de homens excitados.
Na verdade, ninguém se importava com sua vida e a única coisa que queriam saber era que diabos você tinha feito com seus avós para que amanhecessem secos como galhos.
Começaram a chamá-la também de outra coisa, como sua mãe, e a usavam, usavam seu nome, para assustar as crianças.
Um dia lhe disseram que ali, naquela terra maldita que você tinha jurado não voltar a pôr os pés, havia um homem especial e que você devia conhecê-lo. Você nunca poderá dizer claramente por quê, mas desfez o caminho percorrido durante tantos anos. Você andou por quilômetros e quilômetros, despedaçou suas sandálias e chegou certa manhã, descalça, o cabelo emaranhado, a pele queimada.
Ele parecia estar esperando por você. Pediu uma tina de água limpa e se ajoelhou para lavar, com uma delicadeza quase feminina, seus pés sujos e cheios de chagas. Você nunca poderá dizer claramente por quê, talvez porque esse tenha sido o único ato de ternura que já lhe haviam dedicado — a você, criatura das surras, filha da brutalidade, princesa das noites que terminam com as mulheres sangrando —, mas naquele instante você tomou a decisão de oferecer sua vida a ele, de fazer o que ele quisesse, o que fosse, de ser barro nas mãos dele, ser sua, sua escrava.
Ele perguntou seu nome e o repetiu com uma doçura que fez com que você chorasse as primeiras lágrimas, suas lágrimas, menina, que se tornariam lenda. Então ele estendeu a mão e secou-lhe as lágrimas e disse — sim, você não está inventando, ele disse — que a amava.
Disse: eu te amo.
Já não havia como voltar atrás. A órfã, a humilhada, a maltratada, a aleijada, a meio surda, a puta, a assassina, a leprosa já não existiam — nunca mais existiriam.
Era você diante dele.
E você diante dele era uma mulher extraordinária. A melhor das mulheres.
E se um cachorro, que é um ser de pouco entendimento, segue fielmente a quem lhe acaricia a cabeça e o lombo, como você não ia segui-lo até mesmo ao inferno? Como não faria até o impossível para fazê-lo feliz, para ajudá-lo a cumprir suas promessas? Assim, como um cachorro agradecido, você se sentava aos pés dele e ficava observando-o, escutando-o enlevada, louca de amor, como se da boca dele saíssem uvas, mel, jasmim, pássaros.
Às vezes, enquanto ele contava suas doces histórias de pescadores e pastores, você apertava a pedra cinza de seu peito e apareciam mais vinte, trinta, quarenta pessoas a escutá-lo como você: com devoção infantil, como se ele fosse um mago, como se de sua boca saíssem pássaros e mel.
Você sabia que isso o fazia feliz.
E então, muita gente começou a segui-lo. Ele mudou. As histórias se tornaram receitas; os relatos, ordens. Ele começou a falar de coisas que você não entendia, que na verdade ninguém entendia, coisas mágicas, santas, talvez sacrilégios. Para você, nada disso importava.
Os outros já não deixavam que você o tocasse — com exceção da túnica, das sandálias —, e ele já não visitava sua tenda com tanta frequência, com tanta urgência. Restava a lembrança de seu cheiro de homem do deserto que não saía de suas narinas, de seu corpo, de seu vestido. Um cheiro que nunca desapareceu, que até o último instante de sua vida a fazia tremer. Ele era seu, agora um enviado dos céus, dizia, mas seu. E você era dele. Por isso você apertou a pedra em seu pescoço quando ficaram sem vinho naquelas bodas e você fez aparecer peixe e pão onde não havia nada mais que pedras e areia — porque em sua solidão, você aprendeu que a água, as pedras, a areia lhe obedeciam.
Por isso você também aplicou, sem que ninguém a visse, sem que ninguém quisesse vê-la, seu unguento nos olhos brancos do mendigo, que os abriu e disse “milagre”, e você se escondeu no sepulcro daquele homem para inflar seus pulmões mortos com o sopro da vida — na ocasião você invocou forças que não devia, a morte é a morte, mas é muito tarde para se arrepender — e conseguiu que o cadáver se levantasse, que andasse e que ele se preenchesse — mais, cada dia mais — de glória.
Mas isto você não ia permitir. Que ele morresse. Não: que se deixasse matar. Isso você não ia permitir. Você tentou impedir, falou-lhe do unguento, das pedras que se tornaram alimento, do vinho que era água, dos olhos brancos, vazios, daquele mendigo, do cadáver que andou, da pedra que você carrega no pescoço, das forças que você invocou, infinitamente mais poderosas que você e ele. Mas ele não acreditou em você. Ele a pôs de lado com violência — ele, com violência —, e você caiu, e ali do chão, você olhou para ele e viu deus. Esse homem era seu deus. E ele disse que você era mentirosa, disse que você era impostora, disse que você era louca, e ele falou:
Afaste-se das minhas vistas, mulher.
Se um cachorro permanece na porta daquele que lhe dá migalhas de pão e mostra as presas, disposto a despedaçar qualquer um para protegê-lo, como você não ia defendê-lo até mesmo de si mesmo, de sua própria convicção? Por isso, no dia em que o levaram e lhe fizeram todos aqueles horrores, você apertou a pedra e o céu se carregou até se converter numa massa de lava cinzenta, e seu pranto — ai, seu pranto — fez com que as pessoas há milhares de quilômetros começassem a chorar, fazendo amor, lavrando a terra, lavando a roupa num rio, em sonhos.
Quando a cabeça dele pendeu sobre o peito, inerte, você se enrodilhou toda e as pessoas pisotearam-na e um cachorro selvagem a farejou e você pensou em venenos e quis morrer ali mesmo, mas então você começou a chorar. E seu pranto, mulher de lágrima viva, fez uma poça na qual você molhou seu vestido como se fosse um sudário, e nua, sem que ninguém a visse, sem que ninguém quisesse vê-la, você se enfiou no sepulcro no qual, horas depois, o depositariam: esquelético, ensanguentado, mortíssimo.
Com suas costas pregadas na pedra fria, seu corpo pálido, de moribunda, você o viu se levantar e sorriu para ele. Usava no pescoço a pedra cinza, ou seja, usava sua força, seu sangue, sua seiva. A luz que entrou no sepulcro quando ele mexeu a pedra lhe permitiu vê-lo pela última vez: belo, divino, sobrenaturalmente amado.
Ele olhou para você, você está quase certa de que ele olhou para você, e com seu último alento — você estava morrendo — você disse algo a ele, você o chamou, estendeu a mão. A palavra amor pendia no teto como uma estalactite. Mas ele continuou andando ao encontro de seus fanáticos que gritavam, que se jogavam na areia de joelhos, que cobriam o rosto com as mãos.
E não voltou os olhos para trás.

María Fernanda Ampuero, in Rinha de galos

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