quinta-feira, 26 de maio de 2022

A alma

Bastian Balthazar Bux, herói de A história sem fim, viajava pelo reino da Fantasia. A beleza era grande demais, e ele estava encantado. Mas a beleza é perigosa. Precisamente por ser bela. É na arena da beleza que Deus e o Diabo travam as suas batalhas.
Olhando-se para um céu cheio de estrelas igualmente brilhantes, perde-se a noção de direção. E foi o que aconteceu – a beleza era tanta que Bastian acabou por se perder. Esqueceu-se de quem era. Perdeu sua própria imagem, a imagem que era o coração da sua alma. E começou então a vagar sem rumo.
Em seu vagar sem rumo, acabou por chegar a uma mina perdida numa planície gelada. Essa mina era guardada por Ior, o mineiro cego, que explicou a Bastian o segredo dela:

Dentro dessa mina profunda e escura encontram-se guardados, sob a forma de transparências de mica, todos os sonhos da humanidade. Os seus sonhos também estão dentro dela. Se você quiser voltar a saber quem você é, terá de se lembrar dos sonhos de que se esqueceu. Para isso será preciso descer até o fundo da mina e trabalhar sem nada ver, arrancando as placas de mica e trazendo-as para fora. No claro do dia, você poderá ver as imagens que não via no fundo escuro da mina. A maioria das imagens vai deixá-lo indiferente. Esses não são os seus sonhos. Mas, se por acaso acontecer de uma placa de mica o comover, você poderá ter a certeza de que aquela imagem é o retrato da sua alma. Aquela imagem é o seu destino.

Foi isso que Bastian sentiu ao voltar de uma de suas incursões pelas profundezas escuras da mina. Tinha uma folha transparente de mica nas mãos. Olhava fixamente para ela.

Enquanto colocava a imagem sobre a neve, Bastian sentiu muita saudade... Era um sentimento que vinha de muito longe, como uma onda do mar que ao longe parece inofensiva, mas que, à medida que vai se aproximando, se transforma numa parede de água da altura de uma casa, que arrasta tudo consigo. Bastian quase se afogou nessa onda de saudade, e teve de fazer um esforço para respirar. Seu coração lhe doía, era como se não fosse suficientemente grande para uma saudade tamanha...

Ele acabara de se encontrar com a imagem da sua alma.

***

Aquele rosto, na placa de mica que o poeta via pela primeira vez – ele já o havia visto antes. Foi por isso que à surpresa seguiu-se a saudade. Ele se viu diante de um passado ao mesmo tempo desconhecido e conhecido. É por isso que, por vezes, a gente sente saudade sem saber de quê. Como se do passado viesse um perfume que toma conta do corpo – mas não conseguimos ver o lugar de onde ele vem, não sabemos o seu nome. Sentimos saudade do que não sabemos.
A saudade é o sentimento que mais se aproxima da paixão. Porque a paixão é o amor quando tocado pela morte. O amor tocado pela morte se inflama pelo medo da perda. E é assim que eu distinguiria o apaixonado do amoroso: o amoroso goza o seu amor com a leveza de uma criança, enquanto o apaixonado sofre a sua paixão por vivê-la sempre iluminada pela possibilidade da perda. Esse sentimento, que surgiu tão de repente, não poderá desaparecer tão de repente quanto apareceu? Rilke estava apaixonado e deprimido quando escreveu: “Quem foi que assim nos fascinou para que tivéssemos esse olhar de despedida em tudo o que fazemos?”.
Por isso o amante sente saudades da mulher amada mesmo estando ela presente. Cassiano Ricardo perguntava:

Por que tenho saudade
de você, no retrato,
ainda que o mais recente?

O que explica a razão de a visão do rosto amado ser sempre acompanhada de uma certa tristeza. A pessoa, objeto da paixão, está sempre pronta para partir. A alma, lá no fundo, é saudade...

Rubem Alves, in Cantos do Pássaro Encantado

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