terça-feira, 29 de março de 2022

A teoria do nabo

Eu não tinha nenhuma vontade de contar minha história amaldiçoada a ninguém. Se tivesse feito isso, um dono de circo logo estaria atrás de mim, tentando me transformar em uma atração — “Rápido, aproximem-se e deem uma olhada! Pague apenas se gostar do que ver!”
Ou não ver… Eu só queria ser normal.
Dito isso, eu não poderia apenas sentar e não fazer nada para resolver esse mistério, então perturbei o dr. Fujita para ler a minha sorte. Pensei que talvez ele pudesse descobrir algo incomum na minha estrutura facial.
Usando uma lupa que mostrava minhas rugas tão enormes quanto o rio Sumida, o dr. Fujita olhou para o meu rosto por tempo suficiente para cavar um buraco através dele. De repente, um olhar de surpresa apareceu em seu rosto e ele se inclinou para trás, como se estivesse amedrontado. Quando ele começou a falar, havia uma certa formalidade em sua voz:
Hum, esta é a primeira vez que vi seu rosto de tão perto, mas, devo dizer, você tem características extremamente únicas. Fiquei bem surpreso.
O que você quer dizer com características únicas? — eu perguntei, começando a sentir-me desconfortável.
Abandonando a sua habitual preguiça, dr. Fujita colocou as mãos de modo firme em seus joelhos.
Dizem que, uma vez, muito tempo atrás, um dos meus colegas sêniores lera o rosto do criado Tokichiro Kinoshita e previu que ele seria um senhor feudal. O meu colega ficara tão perplexo por sua própria previsão e desacreditado em presciência, que ele quebrou seus palitos de previsão2 ali mesmo, jogou-os no rio e declarou que havia desistido da profissão. No fim, aquele Tokichiro Kinoshita acabou se tornando Toyotomi Hideyoshi, um grande senhor feudal, político e samurai. De qualquer modo, neste mesmo instante estou considerando vender minha lupa e meu livro místico de previsão de futuro para uma loja de penhores.
Ei, não tente me assustar. De que diabos você está falando?
Seu rosto. Ele possui uma combinação rara de características, encontrada apenas uma vez em um quatrilhão de anos ou até mais. Se minha leitura estiver correta, você não é um habitante desta realidade que estamos experenciando.
Espere, o que você disse? Não estou entendendo nada.
Nada está além da sua compreensão. Você, meu amigo, é um ultraterrestre.
Ultraterrestre? Agora fiquei ainda mais confuso. Eu posso ser um ultraterrestre, mas estou diante de você, neste momento, no corpo de um respeitável japonês.
Após minha declaração arrogante, uma revelação perturbadora, causada pela lembrança daqueles eventos atemorizantes, surgiu em minha mente. Estremeci quando a memória daquela noite nos campos de Toyama — em que meu corpo aparentemente se tornou invisível — voltou a mim.
Dr. Fujita me ignorou e prosseguiu:
Para ser direto, o que vejo de você agora não é nada além de uma fatia da sua verdadeira forma, vista de um certo ângulo. Digamos que eu tenha um nabo. Se eu fosse cortá-lo em alguma parte do meio, você veria apenas a forma de elipse da superfície cortada. E pensaria: “Oh, essa é uma suculenta e alva superfície em forma de elipse.” Mas aquela superfície branca não é nada além de uma pequena fatia do nabo. Similar ao que vejo de você agora, à minha frente, não é nada além de uma fatia da sua forma verdadeira. Sua verdadeira forma, como um nabo cuja única fatia branca está visível, é algo que transcende a imaginação.
Eu não estou te entendendo.
Pelo menos em teoria você me entende, não é? Agora considere isto. Em nosso mundo, tudo tem altura, largura e profundidade. Ou seja, três dimensões.
Certo, nosso mundo é tridimensional.
Agora, imagine que nosso mundo tenha apenas duas dimensões. Tem altura e largura, mas não tem profundidade. Um mundo como a superfície de uma água calma, um mundo geometricamente plano.
Ok, um mundo bidimensional.
Agora, digamos que nós mergulhemos com calma aquele nabo na água. A princípio, apenas a ponta quebraria a superfície do líquido. Nesse ponto de vista, no mundo bidimensional o nabo é apenas visível como um minúsculo ponto.
Claro.
Entretanto, conforme eu mergulho o nabo mais profundamente na água, a porção cruzando a superfície dela aos poucos se expande para um círculo branco. No mundo bidimensional, o ponto parece crescer aos poucos para se tornar um círculo branco. Mas, assim que a parte das folhas atinge a água, o que até agora se parecia com um círculo branco de repente se transforma em uma dispersão de várias faixas verdes. Essas faixas estão se movendo continuamente, mudando de forma. Por fim, o ponto mais alto das folhas submerge na água, no mundo bidimensional não há nada mais para ser visto.
Entendi. Que estranho.
O que começou como um ponto branco logo se transformou em um largo disco branco, e então em uma dispersão de faixas verdes, até por fim desaparecer por completo. É como se fosse um fantasma para aquelas formas de vida do mundo bidimensional, mas para nós, no mundo tridimensional, é em sua essência nada além de um nabo penetrando a superfície calma da água, enquanto submerge aos poucos. No entanto, formas de vida bidimensionais não podem nem imaginar a forma do nabo que podemos ver. Aqueles no mundo bidimensional não têm a capacidade de perceber objetos tridimensionais.
Uau, você é um cientista incrível.
Isso mesmo. Fisiognomia é ciência. Mas voltando ao que eu estava dizendo. De acordo com a minha leitura, você não é um ser tridimensional, e sim quadrimensional. Você pode crer que algo tão absurdo nunca poderia acontecer, no entanto, é o que eu descobri por meio da leitura, então não sei mais o que lhe dizer. Na verdade, acho que vou desistir de fisiognomia. É uma farsa completa.
Minha única resposta a isso foi suspirar várias vezes. Eu estava atordoado pelas palavras do dr. Fujita. Porém me faltava energia para declarar dramaticamente que eu, assim como Tokichiro Kinoshita, seria muito bem-sucedido na vida, e que a leitura dele havia sido correta. Só pude lamentar, porque eu, dentre todas as pessoas, nasci como um ser humano amaldiçoado — ou devo dizer, forma de vida amaldiçoada. Ao mesmo tempo, veio-me a curiosidade de saber como seria minha forma verdadeira se eu fosse, de fato, um ser quadrimensional.
Desde então, vivo como um recluso. Parece que ainda há momentos em que meu corpo se torna invisível aos outros. Às vezes, alguém se choca contra mim, e, cada vez que isso acontece, digo a mim mesmo: “Lá vamos nós novamente.”
Eu fiz algumas pesquisas outro dia, mas não encontrei nenhuma informação sobre quem eram meus pais. Então eu sei que devo ter sido adotado. É por isso que não tenho como saber se nasci mesmo de um útero humano. De qualquer modo, não existe ninguém que tenha uma memória clara do seu nascimento. A certeza de que alguém veio do útero da mãe é uma concepção equivocada. Por consequência, suspeito da existência de um grande número de pessoas que também são quadrimensionais, assim como eu, vivendo despreocupados, ignorantes quanto às suas condições.
Essas pessoas devem ser extremamente cuidadosas. Sempre que alguém se chocar com você na rua ou em qualquer outro lugar, reflita sobre isso, mantenha em mente que você pode ser invisível para a outra pessoa — ou, talvez, até um corte transversal de um ser quadrimensional.

Juza Unno, in A última transmissão

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