sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Amigos


Loretta conheceu Anna e Sam no dia em que salvou a vida de Sam.
Anna e Sam eram idosos. Ela tinha oitenta e ele oitenta e nove. Loretta via Anna às vezes quando ia nadar na piscina de sua vizinha Elaine. Um dia ela passou por lá quando as duas mulheres estavam tentando convencer o velho a nadar um pouco. Por fim, ele decidiu entrar na piscina e estava nadando cachorrinho com um grande sorriso no rosto quando teve um ataque. As duas outras mulheres estavam na parte rasa e não perceberam. Loretta pulou na piscina de sapato e tudo, puxou Sam até a escada e depois para fora da piscina. Ele não precisou de ressuscitação, mas estava desorientado e assustado. Ele tinha um remédio para tomar, para epilepsia, e elas o ajudaram a se secar e se vestir. Todos ficaram sentados por lá durante algum tempo até terem certeza de que ele estava bem e poderia ir andando para casa, logo adiante no mesmo quarteirão. Anna e Sam agradeceram várias vezes a Loretta por ter salvado a vida dele e insistiram para que ela fosse almoçar na casa deles no dia seguinte.
Por acaso, ela não ia trabalhar nos dias seguintes. Havia tirado três dias de folga não remunerada porque tinha uma porção de coisas para fazer. Almoçar com eles significaria ter que voltar do centro da cidade até Berkeley e não resolver tudo num dia só como tinha planejado.
Era comum ela se sentir impotente em situações como essa. Aquele tipo de situação em que você pensa: puxa, eles são tão gentis, é o mínimo que eu posso fazer. Se não faz, você se sente culpada e, se faz, você se sente uma banana.
O mau humor de Loretta terminou assim que ela entrou no apartamento deles. O lugar era ensolarado e aberto, como uma velha casa no México, onde eles tinham morado a maior parte da vida deles. Anna tinha sido arqueóloga e Sam engenheiro. Os dois costumavam trabalhar juntos todos os dias em Teotihuacan e outros sítios arqueológicos. O apartamento deles era cheio de cerâmicas e fotografias lindas e tinha uma biblioteca maravilhosa. Lá embaixo, no quintal dos fundos, havia uma horta bem grande, muitas árvores frutíferas e arbustos de amora e framboesa. Loretta ficou espantada quando soube que aqueles dois velhinhos frágeis como passarinhos cultivavam aquilo tudo sozinhos. Ambos usavam bengala e andavam com muita dificuldade.
O almoço foi sanduíches de queijo quente, sopa de chuchu e uma salada de verduras da horta deles. Anna e Sam prepararam o almoço juntos, botaram a mesa e serviram a comida juntos.
Vinham fazendo tudo juntos fazia cinquenta anos. Como irmãos gêmeos, um ecoava o que o outro dizia ou terminava as frases que o outro havia começado. O almoço transcorreu de forma agradável enquanto os dois lhe contavam, em estéreo, algumas das experiências por que tinham passado quando trabalhavam na pirâmide no México e em outras escavações. Loretta ficou impressionada com os dois velhos, com o modo como eles compartilhavam seu amor por música e pelo cultivo da terra, com o prazer que sentiam na companhia um do outro. Ficou impressionada também com quanto eles se envolviam na política local e nacional, indo a passeatas e protestos, escrevendo para congressistas e editores, dando telefonemas. Liam três ou quatro jornais todos os dias e, à noite, liam romances ou livros de história um para o outro.
Enquanto Sam tirava a mesa com mãos trêmulas, Loretta comentou com Anna como era invejável ter um companheiro de vida tão próximo. É, disse Anna, mas em breve um de nós vai partir…
Tempos depois, Loretta se lembraria dessa declaração e ficaria se perguntando se Anna teria começado a cultivar uma amizade com ela como uma espécie de medida de precaução para quando um deles morresse. Mas, não, ela pensou, era mais simples do que isso. Os dois tinham sido extremamente autossuficientes, extremamente capazes de bastar um ao outro durante toda a vida, mas agora Sam estava ficando bastante aéreo e, muitas vezes, incoerente. Repetia as mesmas histórias várias vezes e, embora Anna sempre fosse paciente com ele, Loretta sentia que ela ficava feliz de ter outra pessoa com quem conversar.
Fosse qual fosse a razão, o fato é que ela se viu cada vez mais envolvida na vida de Sam e Anna. Eles não dirigiam mais. Então, Anna com frequência ligava para o trabalho de Loretta para perguntar se ela podia trazer um pouco de turfa quando saísse do trabalho ou se podia levar Sam ao oftalmologista. Às vezes os dois estavam se sentindo mal demais para ir ao mercado, então ela fazia compras para eles. Ela gostava dos dois e sentia admiração por eles. Como pareciam querer muito uma companhia, ela se viu indo jantar na casa deles uma vez por semana ou, pelo menos, uma vez a cada duas semanas. Convidou-os algumas vezes para jantar na casa dela, mas eram tantos degraus para subir e os dois chegavam tão exaustos que ela parou. Então, passou a levar um prato de peixe, frango ou massa quando ia jantar na casa deles. Eles faziam uma salada e serviam frutas do quintal de sobremesa.
Depois do jantar, eles se sentavam em volta da mesa com xícaras de chá de hortelã ou de hibisco e ficavam ouvindo Sam contar histórias. Sobre a vez em que Anna pegou pólio, numa escavação no meio da selva de Yucatán, e como eles a levaram até um hospital e como as pessoas foram gentis. Muitas histórias sobre a casa que eles construíram em Xalapa. Sobre a mulher do prefeito, que uma vez quebrou a perna fugindo por uma janela para evitar uma visita. As histórias de Sam sempre começavam com “Isso me faz lembrar aquela vez…”.
Aos poucos, Loretta foi conhecendo em detalhes a história de vida dos dois. A paquera no monte Tamalpais. O namoro em Nova York, quando eles eram comunistas. Viviam em pecado. Nunca tinham se casado e ainda se orgulhavam desse anticonvencionalismo. Tinham dois filhos; ambos moravam em cidades distantes. Havia histórias sobre um rancho perto de Big Sur, quando os filhos eram pequenos. Quando uma história estava terminando, Loretta dizia: “Estou com muita pena de ir embora, mas tenho que acordar muito cedo amanhã para ir pro trabalho”. Às vezes ela ia embora logo depois. Geralmente, no entanto,
Sam dizia: “Antes, me deixe só lhe contar o que aconteceu com a vitrola a manivela”. Horas depois, exausta, ela ia dirigindo de volta para casa em Oakland, dizendo a si mesma que não podia continuar fazendo isso. Ou que ia continuar, mas estabelecendo um limite de horário claro.
Não que eles fossem chatos ou desinteressantes. Pelo contrário, o casal tinha tido uma vida rica e movimentada, eram pessoas envolvidas e perceptivas. Tinham um interesse enorme pelo mundo e pelo seu próprio passado. Eles se divertiam tanto fazendo acréscimos aos comentários um do outro, discutindo datas ou detalhes, que Loretta não tinha coragem de interrompê-los e ir embora. E ir lá de fato a fazia se sentir bem, já que os dois ficavam muito felizes em vê-la. Mas havia vezes em que ela realmente não sentia vontade de ir até lá, quando estava muito cansada ou tinha alguma outra coisa para fazer. Por fim, ela acabou dizendo que não podia mais ficar até tão tarde, que era difícil levantar no dia seguinte. Então venha tomar brunch com a gente no domingo, disse Anna.
Quando o tempo estava bom, eles comiam numa mesa na varanda, cercados de flores e plantas. Centenas de passarinhos vinham se alimentar nos comedouros bem ao lado deles. Quando esfriava, eles passavam a comer do lado de dentro, perto de uma estufa de ferro fundido. Sam abastecia a estufa com lenha que ele mesmo tinha cortado. Eles comiam waffles ou a omelete especial de Sam; às vezes Loretta levava bagels e salmão defumado. Horas se passavam, o dia inteiro passava enquanto Sam contava suas histórias, com Anna as corrigindo e acrescentando comentários. Às vezes, no sol da varanda ou no calor da estufa, era difícil ficar acordada.
A casa deles no México tinha sido feita de blocos de concreto, mas as vigas, as bancadas e os armários eram de cedro. A primeira coisa que eles construíram foi o salão, que incluía cozinha e sala de estar. Tinham plantado árvores, claro, antes mesmo de começarem a construir. Bananeiras, ameixeiras, jacarandás. No ano seguinte, eles acrescentaram um quarto; alguns anos depois, outro quarto e um gabinete para Anna. As camas, as bancadas de trabalho e as mesas foram feitas de cedro. Eles voltavam para a casinha deles depois de trabalhar num sítio, em outro estado do México. A casa estava sempre fresca e tinha cheiro de cedro, como uma grande arca de cedro.
Anna pegou pneumonia e precisou ficar internada. Mesmo doente como estava, ela só conseguia pensar em Sam, em como ele iria se virar sem ela. Loretta lhe prometeu que passaria na casa deles antes de ir para o trabalho, que o faria tomar os remédios e um bom café da manhã, que voltaria depois do trabalho para preparar o jantar dele e o levaria para o hospital para visitá-la.
O mais terrível era que Sam não falava. Ficava sentado na beira da cama, tremendo, enquanto Loretta o ajudava a se vestir. Mecanicamente, tomava seus remédios, bebia suco de abacaxi, limpava com cuidado o queixo depois de terminar o café da manhã. Quando ela chegava à noitinha, ele já estava plantado na varanda à sua espera. Preferia visitar Anna primeiro e jantar depois. Quando eles chegavam ao hospital, encontravam Anna deitada na cama, pálida, suas longas tranças brancas pendendo como as de uma garotinha. Ela estava com um tubo intravenoso, um cateter e oxigênio. Não podia falar, mas sorria e segurava a mão de Sam, enquanto ele lhe contava que tinha lavado uma carga de roupa, regado os tomates, protegido os feijões com turfa, lavado a louça, feito limonada. Ele falava sem parar, ofegante, relatando cada hora do seu dia para ela. Quando eles iam embora, Loretta tinha que segurá-lo com firmeza, pois ele tropeçava e cambaleava enquanto andava. No carro, voltando para casa, ele chorava, estava muito preocupado. Mas Anna voltou para casa e ficou bem, exceto que havia muita coisa para fazer na horta. No domingo seguinte, depois do brunch, Loretta ajudou a arrancar o mato, a podar as parreiras de amora-preta. Estava preocupada: e se Anna ficasse realmente doente? Onde ela estava se metendo cultivando essa amizade? A dependência que um tinha do outro e a vulnerabilidade dos dois a entristeciam e a comoviam. Esses pensamentos passavam pela sua cabeça enquanto ela trabalhava, mas era agradável estar ali, sentir a terra preta e fresca, o sol nas suas costas. Ouvir Sam contar suas histórias enquanto arrancava o mato do canteiro ao lado.
No domingo seguinte em que foi à casa deles, Loretta chegou atrasada. Tinha acordado cedo, mas estava cheia de coisas para fazer. Queria muito ficar em casa, mas não teve coragem de telefonar e cancelar.
A porta da frente não estava destrancada como de costume, então ela entrou e seguiu em direção ao quintal, para subir pela escada dos fundos. Passou pelo quintal para dar uma espiada na horta, que estava exuberante, repleta de tomates, abóboras, vagens de ervilha. Abelhas entorpecidas. Anna e Sam estavam na varanda, lá em cima. Loretta pensou em chamá-los, mas eles estavam tão concentrados na conversa que ela desistiu.
Ela nunca se atrasou antes. Talvez ela não venha.”
Ah, ela vem sim… essas manhãs significam tanto pra ela.”
Coitada, tão sozinha. Ela precisa de nós. Na verdade, nós somos a única família que ela tem.”
Ela com certeza adora as minhas histórias. Droga. Não estou conseguindo pensar em nenhuma história para contar pra ela hoje.”
Alguma coisa vai acabar te ocorrendo…”
Olá!”, Loretta gritou. “Tem alguém em casa?”

Lucia Berlin, in Manual da faxineira: Contos escolhidos

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