domingo, 28 de novembro de 2021

Jack Chase num tombadilho espanhol

Neste momento, devo ser honesto e contar uma história sobre Jack, que, embora esbarre em sua honra e integridade, tenho certeza não irá diminuí-lo na estima de qualquer homem de coração. Na presente viagem da fragata Neversink, Jack desertara e, passado certo tempo, fora capturado.
Mas qual teria sido o motivo de sua deserção? Fugir à disciplina naval? Entregar-se à diversão e aos excessos em algum porto de perdição? O amor de alguma signorita sem valor? De forma alguma. Ele abandonou a fragata, sim, por mais altos, nobres e gloriosos motivos. Embora respeitoso da disciplina naval a bordo, em terra firme era um defensor obstinado dos direitos do homem e das liberdades do mundo. Jack decidiu desembainhar a espada da causa numa insurreição civil no Peru, abraçando, de corpo e alma, o que julgava ser o justo.
Na época, seu desaparecimento causou enorme surpresa entre os oficiais, que não alimentavam suspeitas de postura desertora em relação a ele.
O quê? Jack, meu grande homem da gávea principal, um desertor?”, surpreendeu-se o capitão. “Não quero acreditar nisso.”
Jack Chase dando no pé!”, exclamou um aspirante com tendências ao romance e à aventura. “Só pode ter sido por amor; foram as signoritas que lhe viraram a cabeça.”
Jack Chase não foi encontrado?”, bradou um veterano resmungão da âncora d’esperança, um daqueles maliciosos profetas de acontecimentos passados: “Pensei nisso; eu sabia; podia até jurar… é o tipo de sujeito que zarpa de fininho. Sempre esperei isso dele.”
Meses se passaram sem qualquer notícia de Jack; até que, por fim, a fragata veio a ancorar na costa, ao lado de uma chalupa de guerra peruana.
Intrepidamente vestido em uniforme peruano e ostentando largas passadas, nas quais se misturavam os estilos naval e marcial, avistou-se a figura portentosa e alta de um oficial de barba longa caminhando pelo tombadilho da nau estrangeira; e supervisando as saudações que, em tais ocasiões, são trocadas entre navios de diferentes bandeiras nacionais.
Mirando nosso capitão, esse belo oficial tocou o chapéu adornado à maneira mais cortês; e aquele, depois de devolver-lhe o cumprimento, observou-o com certa indiscrição, tomando do monóculo.
Por Deus!”, ele gritou por fim. “É ele… ele não consegue disfarçar aquele jeito de andar… é a barba; eu o reconheceria na Cochinchina… Homens ao primeiro bote! Lugar-tenente Blink, quero que vá a bordo daquela chalupa e me traga aquele oficial.”
Todos ficaram assustadíssimos. O quê? Com os Estados Unidos e o Peru vivendo em calorosa paz, mandar um destacamento armado a bordo de uma chalupa peruana e capturar um de seus oficiais em plena luz do dia? Nefasta infração das Leis Internacionais! O que Vattel diria?
Mas ao capitão Claret era preciso obedecer. E lá se foi o bote, com todos os homens armados até os dentes, o lugar-tenente em exercício investido de instruções secretas, e os aspirantes a bordo ostentando ar de presciente sagacidade, embora, em verdade, não fossem capazes de dizer o que estava por vir.
Chegando à chalupa de guerra, o lugar-tenente foi recebido com as devidas honras; mas, àquela altura, o oficial alto e barbado desaparecera do tombadilho. O lugar-tenente mandou chamar o capitão peruano; e, após ser conduzido até a cabine, informou-lhe que a bordo de sua embarcação havia um indivíduo pertencente ao USS Neversink e que tinha ordens de levá-lo imediatamente.
O capitão estrangeiro enrolou as pontas do bigode, surpreso e indignado, e deu a entender um chamado aos postos, em resposta àquela demonstração de insolência ianque.
Porém, mantendo uma das mãos enluvadas sobre a mesa e brincando com a borla presa a sua espada, o lugar-tenente, não sem branda firmeza, repetiu a ordem. Por fim, com o caso todo esclarecido, e o indivíduo em questão descrito com precisão — incluindo uma mancha no rosto —, nada restou além de uma imediata concórdia.
Assim, o alinhado oficial de bastas barbas, que erguera cortesmente o chapéu a nosso capitão porém desaparecera à chegada do lugar-tenente, foi chamado à cabine diante de seu superior, que assim lhe dirigiu a palavra:
Don John, este cavalheiro declara que, por direito, você pertence à fragata Neversink. É verdade?”
Sim, don Sereno”, respondeu Jack Chase, levando ao peito os galões dourados das mangas de seu fardão, “e, não havendo resistência à fragata, entrego-me… Lugar-tenente Blink, estou pronto. Adeus, don Sereno, e que a Madre de Dios o proteja! Como amigo e capitão, o senhor sempre foi um cavalheiro. Espero que esmague seus sórdidos inimigos.”
Com isso, ele se virou e, embarcando no bote, foi levado à fragata e adiantou-se ao tombadilho do navio, onde o capitão Claret estava.
Às suas ordens, meu caro don”, disse o capitão, erguendo ironicamente o chapéu, porém ao mesmo tempo mirando Jack com um olhar de intenso descontentamento.
Seu mais devoto e penitente capitão de gávea grande, senhor; alguém que, em sua mais contrita humildade, ainda tem o orgulho de reconhecer no capitão Claret seu comandante”, respondeu Jack, produzindo uma gloriosa mesura e, então, num gesto trágico, lançando sua espada peruana ao mar.
Reintegrem-no imediatamente”, bradou o capitão Claret. “Agora, senhor, ao trabalho; se cumprir bem com suas funções até o final da viagem, não mais será lembrado de sua fuga.”
Assim, Jack avançou em meio à multidão de admiradores, marujos que depositavam toda a confiança naquela barba castanha, que crescera e se expandira espantosamente durante sua ausência. Os marinheiros dividiram entre si seu chapéu agalonado e o uniforme; e sobre os ombros o carregaram em triunfo pela coberta dos canhões.

Herman Melville, in Jaqueta Branca

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