segunda-feira, 21 de junho de 2021

Travessia

O amor sobressaltava em mim. Prosperava sem medo e veio sair pelos olhos, nariz, ouvidos, jamais pela palavra. Investi, sem medida, no verbo amar e me vi mudo. Minha boca não exalava palavras. Beijar era minha espuma, meu mar, meu batismo. Discordava do céu como a suavidade suprema. Quando as bocas se entretinham debaixo do assoalho do porão, o paraíso se anunciava. Pela boca o amor me devorava. Não projetava outro céu. O amor apaziguava minhas águas.
O medo da solidão pode nos tornar acessíveis, recomendava a mãe. Impor-se atento diante da solidão é questão de prudência. Quando a sede avança podemos beber da água do poço mais próximo, por concessão. É sensato sustentar a sede e alcançar a mina. Eu ansiava pelas primeiras águas, atravessando imenso deserto.

Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo

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