terça-feira, 29 de junho de 2021

A vida com suas dúvidas

O irmão, o mais velho, recontava as histórias ouvidas da professora. Depois da morte fuga, abandono, traição, afirmava: “Foram felizes para sempre”. Sempre pensei o “sempre” como um tempo muito longe. O sempre começava no nascimento e acabava, para cada um, numa hora que fugiu do relógio. Viajar para o sempre não demanda bilhete de partida. Quando se assusta, somos expulsos para o sempre, mesmo sem passagem. Eu sabia que viver um dia é ter menos um dia. Comer o tomate era subtrair um tomate. Para sempre me convenci de que o tomate era meu calendário.
Seis. Mais breve que o susto o irmão foi-se. Diferente da partida da mãe, ele escolheu afastar-se sem noticiar seu endereço. Não houve flor, cera, reza, terra, nem o mais profundo.
Como pássaro, voou com desnorteio sem deixar rastro. Procurei por ele em todas as horas, sem encontrá-lo mesmo fora do relógio. A lucidez da solidão enforcava-me, impedindo-me de gritar por ele.
Já não se entrevia o arroz através da fatia do tomate. A faca fatiava com precisão cirúrgica. O exílio do irmão deu mais sustância ao tomate. Agora dividido por seis. Não era possível devorá-lo com apenas uma colherada. Minha fatia eu dividia ao meio. Um pedaço para mim, outro para minha fantasia.
Por ouvir dizer, apontavam-me como semelhante à sua fotografia, escondida no fundo da arca de madeira de lei. Na névoa do olhar, na melancolia escrita na fronte, na parcimônia do sorriso, nas meias-luas nas unhas, nas pausas semibreves ao pontuar o mundo, no desconforto pela incógnita do futuro, minha mãe vivificava em mim. Em mim, prolongava-se o ranço de sua presença. Impossível ignorá-la diante de mim. Doía. Doía o corpo inteiro.
Mas havia as tardes, com essências inodoras de crepúsculos. Neste instante de incertezas — entre cores — a vida com suas dúvidas se torna por demais demorada. (Viver fica entre parênteses.) A paciência aconchega a alma e adormece a dor. A beleza gratuita das tardes arranha até os olhos e toda ausência mais dói, e mesmo o silêncio é insuficiente para suportar esse meio-termo.

Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo

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