quarta-feira, 31 de março de 2021

Uma graça ainda por chegar

Estacionado na porta do homem da tesoura, reparava seus cortes. Tudo eu olhava devagar para bem imaginar. Sua mão firme retalhava os caminhos riscados sobre a casimira ou linho. O destino da tesoura era traçado. No meu caminhar não havia amparo. Nunca o alfaiate torturava o tecido para depois perguntar-se: para quê? Em princípio, os pedaços de panos lembravam mapas de tantos países: Itália, França, Cuba, Grécia, Portugal. Depois, a agulha alinhavava as fronteiras e o paletó mostrava-se completo. A ponta fina da agulha vazava o ar e amarrava, com perfeito amor, os estranhos pedaços. Suspeitava que o mundo não fora riscado antes de cumprir-se. Suspeitar é negar-se à certeza.
Mas também passarinho é uma vírgula pontuando o céu. Eu ensaiava ler as perguntas que preenchiam o azul vazio e os pássaros virgulavam. Descobri ser uma língua estrangeira a voz dos pássaros, e embaraçava-me. Então, subvertia respostas para tapear meu desconsolo. Não ter resposta é confirmar-se ausente. Viver exige perguntas e eu, mudo, não sabia responder.
Também pela superfície profunda da pele a memória se faz palavra. No roçar do frio as lembranças das mãos do amor desanuviam-se. Na água morna que enxágua o corpo nasce um desejo de desnascer. É atravessando os poros que sua voz, em música, alcança meus ouvidos. O aço frio da faca afiada encrespa-me da carne à alma.
A mãe colhia singelos buquês de flores e sepultava aos pés de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Imagem de gesso, colada com grude de polvilho — de muito tombar — na quina do quarto. Às vezes, uma vela permanecia acesa, sem pecado para queimar-se.
Comemorava-se uma graça ainda por chegar. Só as rosas não se intrometiam nessa indesvendável promessa. Desconheço o motivo, se pavor do espinho ou da dor. Agora, com sua ferida cicatrizada, ela nos deixou entre rosas, já sem medo dos espinhos, sem respirar o perfume, sem reparar nas cores.

Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo

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