Mais um tipo que perambulava pelo interior do Nordeste: Bafo de Bode, interpretado por Bemvindo Sequeira na novela Tieta
Ofereceram
a meu pai o emprego de juiz substituto e ele o aceitou sem nenhum
escrúpulo. Nada percebia de lei, possuía conhecimentos gerais muito
precários. Mas estava aparentado com senhores de engenho, votava na
chapa do governo, merecia a confiança do chefe político — e
achou-se capaz de julgar.
Naquele
tempo, e depois, os cargos se davam a sequazes dóceis, perfeitamente
cegos. Isto convinha à justiça. Necessário absolver amigos,
condenar inimigos, sem o que a máquina eleitoral emperraria.
Os
magistrados de anel e carta diligenciavam acomodar-se, encolher-se,
faziam vista grossa a muita bandalheira. De repente acuavam, tinham
melindres que o mandão local não entendia e lançava à conta de má
vontade. E lá vinham rixas, viagens rápidas, afrontas, um libelo
contestado a punhal ou cacete. Enfim os bacharéis se aguentavam mal.
Dispensavam-lhes obséquios, salamaleques — e desviavam-nos.
Subsistia o Juiz de Direito, que ordinariamente se ausentava da
comarca.
Os
funcionários matutos não vacilavam: ignorando a razão de
intransigências, amoleciam imperturbáveis, assinavam despachos
redigidos pelo escrivão.
Foi
assim que meu pai recebeu um título e suportou a alegria ruidosa do
preto José Luís, que, aos sábados, da sala à cozinha, ria,
gritava, dançava, entusiasmado:
— Cadê
o nosso juiz substituto?
Não
havia motivo para júbilo. Conservo dessa autoridade uma recordação
lastimosa.
Venta-Romba
pedia esmola, gemendo uma cantilena, indiferente às recusas: —
Como vai, seu Major? E a mulher de seu Major? Os filhinhos de seu
Major? A voz corria mansa; as rugas da cara morena se aprofundavam
num sorriso constante; o nevoeiro dos olhos se iluminava com estranha
doçura.
Nunca
vi mendigo tão brando. A fome, a seca, noites frias passadas ao
relento, a vagabundagem, a solidão, todas as misérias acumuladas
num horrível fim de existência haviam produzido aquela paz. Não
era resignação. Nem parecia ter consciência dos padecimentos: as
dores escorregavam nele sem deixar mossa.
— Como
vai, seu Major? Os filhinhos de seu Major?
Humildade
serena, insignificância, as mãos trêmulas e engelhadas, os pés
disformes arrastando as alpercatas, procurando orientar-se nas
esquinas, estacionando junto dos balcões. Restos de felicidade
esvaíam-se nas feições tranquilas. O aió sujo pesava-lhe no
ombro; o chapéu de palha esburacado não lhe protegia a cabeça
curva; o ceroulão de pano cru, a camisa aberta, de fralda exposta,
eram andrajos e remendos.
Aparecia
uma vez por semana, às sextas-feiras, quando se realizava a
caridade: um pires de farinha nas casas particulares, um vintém nas
lojas e nas bodegas. Mas as famílias de lojistas e bodegueiros não
exerciam a caridade, porque isto seria redundância.
— Peça
na venda.
Tínhamos
ordem para afastar os peditórios.
Uma
sexta-feira Venta-Romba nos bateu à porta. Deve ter batido: não
ouvimos as pancadas. Achou o ferrolho e entrou, surgiu de supetão na
sala de jantar, os dedos bambeando no cajado. As moças
assustaram-se, os meninos caíram em grande latomia.
— Vá-se
embora, meu senhor, disse a patroa.
A
distância, esse tratamento de meu senhor a uma criatura em farrapos
soa mal. Era assim que minha mãe se expressava dirigindo-se a
qualquer desconhecido. Trouxera o hábito da fazenda, e isto às
vezes não revelava polidez. Em tons vários, meu senhor traduzia
respeito, desdém ou enfado. Agora, com estridência e aspereza,
indicava zanga, e a frase significava, pouco mais ou menos:
— Vá-se
embora, vagabundo.
Venta-Romba
perturbou-se, engasgou-se, apagou o sorriso; o vexame e a
perplexidade escureceram-lhe o rosto; os beiços contraíram-se,
exibindo as gengivas nuas.
— Sinha
dona... murmurou.
Com
certeza buscava explicar-se. Interjeições roucas e abafadas
escapavam-lhe; os olhos baços percebiam o terror das crianças e
arregalavam-se aflitos.
Minha
mãe era animosa. Atirava, montava, calejara na vida agreste. Certo
dia um Coronel lhe entrou subitamente na cozinha, lívido,
rogando-lhe que o escondesse da polícia: trancou-o num quarto,
guardou a chave, tomou as primeiras medidas necessárias à fuga. Não
precisava que o marido, pessoa débil, viesse enxotar Venta-Romba.
Mas expediu o moleque José com um recado e plantou-se junto à mesa,
áspera, silenciosa, os cantos da boca repuxados, a mancha vermelha
da testa muito larga.
Diante
dela, o pobre intentava aliviar a impressão má, e cada vez mais se
confundia; deixou passar o momento de retirar-se. Cocava a cabeça,
gemia desculpas asmáticas, e ninguém o escutava. Num arranco de
impaciência, bateu com o pau no tijolo, agravou a balbúrdia. A
severidade vincou o rosto da mulher; as moças cochicharam rezando e
fixaram a atenção na entrada do corredor.
Nesse
ponto chegou meu pai. Chegou alvoroçado, branco, e logo se
fortaleceu, pôs-se a interrogar Venta-Romba, que desabafou,
estranhou a desordem: implicância dos meninos, gritos, choro, a dona
sisuda, as doninhas arrepiadas. Fuzuê brabo à toa, falta de juízo.
Graças a Deus, tudo se alumiava. Descobriu-se, despediu-se, caminhou
de costas:
— Adeus,
seu Major.
Meu
pai atalhou-o. Antes de qualquer sindicância, tinha-se resolvido.
Enganara-se com os exageros do moleque, enviara um bilhete ao
comandante do destacamento. A fraqueza o impelia a decisões
extremas. Imaginara-se em perigo. Reconhecia o erro, mas
obstinava-se. Misturava o sobressalto originado pela notícia ao
enjoo que lhe causava a figura mofina — e desatinava. Propendia a
elevar o intruso, imputar-lhe culpa e castigá-lo. De outro modo, o
caso findaria no ridículo.
— Está
preso, gaguejou, nervoso, porque nunca se exercitara naquela espécie
de violência.
Alguém
tossiu na sala, um boné vermelho apareceu no fim do corredor.
Insensível,
Venta-Romba tropicava como um papagaio, arrimava-se penosamente à
ombreira da porta. Deteve-se, largou uma exclamação de surpresa e
dúvida. E quando a frase se repetiu, balbuciou descorado:
— Brincadeira
de seu Major.
Espalhou
a vista em roda: o barulho das crianças fora substituído por uma
curiosidade perversa; as moças tremelicavam na costura; a face de
minha mãe expunha indiferença imóvel; um sujeito passeava na sala
de visitas, exibindo pedaços da farda vistosa. Claro que não era
brincadeira, mas o velho, estonteado, não alcançava o desastre.
Arredou-se da porta, encostou-se à parede, esboçou um movimento de
defesa. Se não fosse banguelo, rangeria os dentes; se os músculos
não estivessem lassos, endureceria as munhecas, levantaria o cajado.
Impossível morder ou empinar-se; o gesto maquinal de bicho acuado
esmoreceu; devagar, a significação da palavra rija furou, como pua,
o espírito embotado. E emergia da trouxa de molambos uma pergunta
flácida:
— Por
que, seu Major?
Era
o que eu também desejava saber. À janela, distraindo-me com o voo
das abelhas e o zunzum do cortiço pendente no beiral, vira o
espalhafato nascer e engrossar em minutos. Não haviam colaborado
nele — e a interrogação lamentosa me abalava. Por quê? Como se
prendia um vivente incapaz de ação? Venta-Romba movia-se de leve.
Não podendo fazer mal, tinha de ser bom. Difícil conduzir aquela
bondade trôpega ao cárcere, onde curtiam pena os malfeitores.
— Por
que, seu Major?
O
cochicho renovado ficou sem resposta. Seu Major não saberia
manifestar-se. Assombrara-se, recorrera à força pública e receava
contradizer-se.
Talvez
sentisse compaixão e se reconhecesse injusto. Enraivecia,
acusava-se, e despejava a cólera sobre o infeliz, causa do
desarranjo. Em desespero, roncou injúrias. O polícia que pigarreava
na sala se avizinhou, a blusa desabotoada, faca de ponta à cintura,
as reiúnas de vaqueta ringindo.
Vinte
e quatro horas de cadeia, uma noite na esteira de pipiri, remoques
dos companheiros de prisão, gente desunida. Perdia-se a sexta-feira,
esfumava-se a beneficência mesquinha. Como havia de ser? Como havia
de ser o pagamento da carceragem?
Venta-Romba
sucumbiu, molhou de lágrimas a barba sórdida, extinguiu num
murmúrio a pergunta lastimosa. O soldado ergueu-lhe a camisa,
segurou o cós do ceroulão, empunhou aquela ruína que tropeçava,
queira aluir, atravessou o corredor, ganhou a rua.
Fui
postar-me na calçada, sombrio, um aperto no coração. Venta-Romba
descia a ladeira aos solavancos, trocando as pernas,
desconchavando-se como um judas de sábado da Aleluia. Se não o
agarrassem, cairia. O aió balançava; na cabeça desgovernada os
vestígios de chapéu iam adiante e vinham atrás; as alpercatas
escorregavam na grama.
Eu
experimentava desgosto, repugnância, um vago remorso. Não arriscara
uma palavra de misericórdia. Nada obteria com a intervenção
certamente prejudicial, mas devia ter afrontado as consequências
dela. Testemunhara uma iniquidade e achava-me cúmplice. Covardia.
Mais
tarde, quando os castigos cessaram, tornei-me em casa insolente e
grosseiro — e julgo que a prisão de Venta-Romba influiu nisto.
Deve ter contribuído também para a desconfiança que a autoridade
me inspira.
Graciliano
Ramos, in Infância
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