Sábado
de Carnaval. O índio entrou no bar Caras e Bocas, pintura de guerra
feita com esparadrapo, sentou em frente a mim e suspirou:
– Canalha.
Estendi
a mão.
– Prazer.
Canalha de quê?
Ele
riu. Fiz um sinal pro Davi trazer dois chopes.
– Minha
vida era aquela criança e agora...
– Morreu?
– Não,
foi morar com a tia.
Bebi
um gole e relaxei. Adoro drama contado em buteco.
– Durante
a gravidez a mãe dela não passou bem. Eu disfarçava meu próprio
sofrimento bebendo e bancando o macho. Uma noite a mãe dela me pediu
que fosse a um supermercado e comprasse mamão papaia, tava com muito
desejo. Eu disse pra ela não encher meu saco. Ela me olhou com uns
olhos de mágoa que eu não consigo esquecer. Senti que tinha perdido
a mulher. Era só uma questão de tempo. A criança nasceu de sete
meses, foi pra incubadora. Fiz promessa: se a menina vingasse, eu
pararia de fumar charuto, ela se chamaria Aparecida e, durante três
anos, sairia vestida igualzinha a santa, com andor e o escambau, no
meio da bateria do bloco onde eu era o faz-tudo, o Grêmio
Carnavalesco Quem Nunca Sentiu Vai Sentir Agora. Quando
Aparecida fez cinco anos, a mãe fugiu com um protético. Disse que
nunca mais queria me ver. Senti que era hora de começar a cumprir
minha promessa. No carnaval seguinte, armamos o Bloco, na Praça
Mauá, pra atravessar a Rio Branco de cabo a rabo. Caiu um toró
desgraçado. Quando colocamos Aparecida, de manto e coroa, no andor,
a chuva parou como que por encanto. Tava todo mundo meio de porre.
Dorinha Valium-10 gritou: “Milagre”! Teve gente que se ajoelhou.
De farra. Não choveu uma gota até que tirei Aparecida do andor, lá
perto do Obelisco. Foi pousar a menina no chão e o pé d'água
desabar. Dava pra ver respeito, medo até, nos olhos das pessoas. Eu
tava engatilhando uma piada pra desanuviar o astral quando Aparecida
fez um gesto tipo cala-essa-boca, e avisou a todos, com voz suave e
adulta: “Esse ano foi a chuva, ano que vem serão os pombos”.
– Nunca
tive tanta vontade de fumar um charuto na minha vida.
Eu
quis mandar buscar uns charutos no buteco da esquina, já que o Caras
não vendia nada de fumo. O índio riu:
– Não,
obrigado. Parei de vez. Eu tive vontade naquela hora, lá na avenida.
Pedi
mais dois.
– Bom,
durante o resto do ano, Aparecida se comportou como uma criança
perfeitamente saudável, sem problema. Nem pesadelo tinha. Chegou o
Carnaval. Desfilamos outra vez na Rio Branco. Quando estávamos
passando pela Cinelândia, um monte de pombos pousou no andor. Há
quem diga que foram três ou quatro. Outros juram que foram dezenas.
Eu não sei mais. No meio do tumulto, gente chorando, um menino que
saía de cadeiras de roda, com uma cuíca, levantou e agradeceu a
graça conquistada. Eu quase tive um troço. Me deu uma vontade de
fumar tão grande que a minha boca entortou. Olhei pra Aparecida:
tinha crescido. A roupa de santinha tava na altura das canelas dela.
Dava pra ver o tênis rosa-sujo. Fiquei com os olhos cheio de
lágrimas e pensei: nessa terra até Nossa Senhora tem chulé.
Aparecida sorriu docemente pra mim e orou: “Madrinha, faz eu voar
ano que vem! Nem que seja só um pouquinho."
O
índio pediu pra ir ao banheiro. Sabia cortar na hora certa. Quando
voltou, ficou calado um tempão. Não forcei a barra. De repente,
começou a chorar. Mais dois e ele contou o resto da história.
– Era
o último desfile dela. Na concentração, na Praça Mauá, tinha até
Televisão. Vários jornais publicaram reportagens sobre os milagres.
Muita gente tinha recortes, com fotografia da menina, presos no peito
com alfinetes, colados, eu sei lá. Até o cardeal falou sobre o
bloco em seu programa de rádio e aproveitou a deixa pra esculhambar
a Xuxa. A praça fervia. Tinha PM em traje de gala, representante do
Prefeito, bandeiras do PT, uma loucura. Nunca vi tanto aleijado
junto. O malandro do repique era surdo-mudo. A maior mistura de
cabrochas seminuas e beatas com vela, terço, ex-voto... Que zona,
parceirinho! Depois de muita confusão, o bloco saiu. O refrão do
samba era assim:
“Santos
Dumont deu motivo pro Brasil se orgulhar
Abre
alas Ponte Aérea, que a Santa vai voar”.
– É
mole? Eu ouvia tão fascinado que o chope esquentou. Mais dois!
– Perto
do Avenida Central ela abriu os braços e começou a tremer. Foi
indescritível. O povo cantava o refrão como se estivesse numa
igreja, a bateria sentando a lenha. A turma da corda não conseguia
conter os fiéis. Pintou um turista alemão filmando a cena, baita
charuto na boca. Não aguentei. Tirei o palhaço da boca do gringo e
puxei fundo. O andor todo balançava. Os foliões todos gritavam: “É
agora! É agora!” Perto do Teatro Municipal uns babacas ensaiaram o
corinho: “Mar-me-la-da! Mar-me-la-da!”. Saiu um cacete pra
Maguila nenhum botar defeito, todo mundo dando e levando. O único
jeito de acabar com aquilo era Aparecida levantar voo. Perdi a
cabeça. Me pendurei no andor e dei um tremendo esporro: “Tá
rateando, merda? Decola logo, sua filha da...!” E aí...
Eu
quase sem ar:
– E...
aí?
– Foi
um voo curto mas valeu. Aparecida soltou um berro medonho, despregou
do andor, planou uns dois metros, o manto azul de cetim feito
asa-delta de pobre, e caiu de cabeça no meio da bateria. A massa
delirou. Aparecida levou seis pontos na testa e, na Quarta-feira de
Cinzas, foi morar com a tia. Disse que nunca mais queria me ver.
– Por
causa dos palavrões? - mas
– Não.
Por ter enfiado a brasa do charuto na perninha dela. Eu costumo dizer
que santa voadora não admite co-piloto.
Aldir
Blanc, in Brasil passado a sujo
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