sexta-feira, 22 de maio de 2020

A morte agarrada

Beleza Smith soltou a corrente de seu pescoço e deu um passo para trás.
Dessa vez Caninos Brancos não reagiu com um ataque imediato. Ficou parado, as orelhas eretas para a frente, alerta e curioso, vigiando o estranho animal à sua frente. Ele nunca vira um cachorro assim antes. Tim Keenan empurrou o buldogue para a frente com um resmungado “Ataque!” O animal avançou gingando para o centro do círculo, baixo, atarracado e desajeitado. Parou e piscou para Caninos Brancos.
Da multidão vieram gritos de “Ataque, Cherokee!” “Morda, Cherokee!” “Devore!”
Mas Cherokee não parecia ansioso para lutar. Virou a cabeça e piscou para os homens que gritavam, abanando ao mesmo tempo jovialmente o seu toco de rabo. Não tinha medo, apenas preguiça. Além disso, não lhe parecia séria a intenção de que brigasse com o cachorro que via à sua frente. Não estava acostumado a brigar com esse tipo de cachorro, e aguardava que trouxessem o verdadeiro cachorro.
Tim Keenan entrou e inclinou-se sobre Cherokee, acariciando-o nos dois lados dos ombros com mãos que esfregavam a contrapelo e que davam leves empurrões para a frente. Eram sugestões. Além disso, o seu efeito era irritante, pois Cherokee começou a rosnar, muito de leve, bem no fundo da garganta. Havia uma correspondência de ritmo entre os rosnados e os movimentos das mãos do homem. O rosnado subia na garganta com o auge de cada empurrão para a frente, depois diminuía para começar de novo com o início do próximo movimento. O fim de cada movimento era o acento do ritmo, o movimento terminando abruptamente e o rosnado aumentando com um safanão.
Isso não deixou de ter o seu efeito sobre Caninos Brancos. O pelo começou a se erguer no pescoço e pelos ombros. Tim Keenan deu um último empurrão para a frente e voltou a recuar. Quando o impulso que empurrava Cherokee morreu, ele continuou a seguir por sua própria vontade, numa corrida rápida de patas tortas. Foi então que Caninos Brancos atacou. Um grito de espanto e admiração se elevou. Ele tinha percorrido a distância e atacado mais como um gato do que como cachorro; e com a mesma rapidez felina mordera com as presas e pulara para longe.
O buldogue estava sangrando atrás de uma orelha por uma tira aberta no pescoço grosso. Não acusou o golpe, nem mesmo rosnou, mas virou-se e foi atrás de Caninos Brancos. O espetáculo de ambos os lados, a rapidez de um e a constância do outro, tinha excitado o espírito partidário da multidão, e os homens faziam novas apostas e aumentavam as apostas originais. Mais uma vez, e ainda mais uma vez, Caninos Brancos atacou, mordeu e safou-se ileso; e o seu estranho inimigo continuava a segui-lo, sem muita pressa, não lentamente, mas deliberada e determinadamente, de um modo sistemático. Havia propósito no seu método – algo a ser feito que ele estava determinado a fazer e de que nada poderia desviá-lo.
Todo o seu porte, os seus movimentos, estavam marcados com esse propósito. Isso intrigava Caninos Brancos. Jamais vira um cachorro desse tipo. Não tinha a proteção do pelo. Era macio e sangrava facilmente. Não havia uma camada espessa de pele para obstruir os dentes de Caninos Brancos, como eles eram frequentemente obstruídos pelos cachorros de sua própria estirpe. Toda vez que atacavam, os dentes afundavam facilmente na carne submissa, enquanto o animal não parecia capaz de se defender. Outro fato desconcertante era que ele não fazia alarido, como Caninos Brancos estava acostumado a escutar dos outros cachorros com que lutara. Além de um grunhido e um resmungo, o cachorro recebia os golpes em silêncio. E nunca vacilou na sua perseguição a Caninos Brancos.
Não que Cherokee fosse lento. Ele podia se virar e rodopiar com bastante rapidez, mas Caninos Brancos nunca estava no lugar esperado. Cherokee também estava intrigado. Nunca lutara com um cachorro do qual não conseguia chegar perto. O desejo de entrar em contato sempre fora mútuo. Mas ali estava um cachorro que sempre mantinha uma distância, dançando e esquivando-se aqui e ali e em toda parte. E quando metia os dentes nele, o cachorro não mantinha a mordida, mas soltava-o imediatamente e afastava-se de novo como um raio.
Mas Caninos Brancos não conseguia atacar a parte macia debaixo da garganta. O buldogue era baixo demais, e as mandíbulas maciças constituíam uma proteção adicional. Caninos Brancos atacava e escapava ileso, enquanto as feridas de Cherokee aumentavam. Os dois lados do pescoço e a cabeça estavam em ripas e cheios de mordidas. Ele sangrava copiosamente, mas não mostrava sinais de estar desconcertado. Continuava a sua perseguição arrastada, embora em certo momento, frustrado, tivesse parado completamente e piscado para os homens que o observavam, abanando ao mesmo tempo o seu toco de rabo como expressão de sua vontade de lutar.
Nesse momento, Caninos Brancos saltou sobre ele e para longe, retalhando de passagem o que sobrava de uma orelha. Como uma leve manifestação de raiva, Cherokee retomou a perseguição, correndo na parte interna do círculo que Caninos Brancos estava traçando e procurando assestar a sua mordida mortal na garganta de Caninos Brancos. O buldogue errou por um triz, e gritos de admiração se elevaram no ar, quando Caninos Brancos eludiu de repente o perigo saltando na direção oposta.
Passava o tempo. Caninos Brancos ainda dançava, esquivando-se e escapando, atacando e afastando-se, sempre causando dano. E ainda assim o buldogue, com uma certeza sombria, labutava na sua perseguição. Mais cedo ou mais tarde realizaria o seu propósito, daria a mordida que venceria a batalha. Nesse meio tempo, aceitava todos os danos que o outro pudesse lhe infligir. Os seus tufos de orelhas tinham se transformado em borlas, o pescoço e os ombros estavam mordidos em vinte lugares, e os próprios lábios cortados sangravam – tudo fruto daquelas mordidas relâmpagos que estavam fora do alcance da sua previsão e guarda.
Mais de uma vez Caninos Brancos tentara derrubar Cherokee, mas a diferença de alturas era grande demais. Cherokee era demasiado atarracado, demasiado rente ao chão. Caninos Brancos tentou o truque repetidas vezes. A chance veio num de seus rápidos esquivos e giros ao contrário. Pegou Cherokee com a cabeça virada para fora, rodopiando mais lento. O ombro estava exposto. Caninos Brancos lançou-se sobre ele, mas o seu próprio ombro estava muito acima, e ele golpeou com tal força que seu impulso o carregou por sobre o corpo do outro. Pela primeira vez na sua história de lutas, os homens viram Caninos Brancos perder o apoio das patas. O corpo deu um meio salto mortal no ar, e ele teria pousado sobre o lombo se não tivesse se torcido, à maneira de um gato, ainda no ar, no esforço de firmar as patas de novo no chão. O que aconteceu é que ele caiu pesado sobre o lado. No instante seguinte já estava sobre as patas, mas nesse momento os dentes de Cherokee se fecharam sobre a sua garganta.
Não foi uma boa mordida, por ser baixa demais em direção ao peito, mas Cherokee não a largou. Caninos Brancos pulou sobre as patas e correu loucamente pra lá e pra cá, tentando livrar-se do corpo do buldogue. Isso o deixava frenético, esse peso agarrado, arrastado. Limitava os seus movimentos, restringia a sua liberdade. Era como uma armadilha, e todo o seu instinto se ressentia da captura e revoltava-se contra a cilada. Era uma louca revolta. Por vários minutos, ficou para todos os efeitos insano. A vida básica que nele havia tomou conta de Caninos Brancos. A vontade que seu corpo tinha de existir avolumou-se no seu interior. Estava dominado por esse mero amor carnal da vida. Toda a inteligência desaparecera. Era como se não tivesse cérebro. A razão foi desequilibrada pelo desejo carnal cego de existir e mover-se, a todo transe mover-se, continuar a se mover, pois o movimento era a expressão da sua existência.
Correu mais de uma vez ao redor, rodopiando, virando-se e invertendo a direção, tentando livrar-se dos vinte e três quilos que arrastava na garganta. O buldogue só cuidava de não largar a mordida. Às vezes, raramente, conseguia pôr as patas no chão, para concentrar por um momento as suas energias contra Caninos Brancos. Mas, no momento seguinte, já perdia o apoio das patas e era arrastado ao redor no redemoinho de mais um dos rodopios malucos de Caninos Brancos. Cherokee identificava-se com o seu instinto. Sabia que estava agindo certo ao manter a mordida, e sentia às vezes certos frêmitos prazerosos de satisfação. Nesses momentos, até fechava os olhos e deixava que seu corpo fosse jogado para lá e para cá, de bom ou de mau grado, sem cuidar das feridas que poderia receber com isso. Os danos não contavam. A mordida era o importante, e a mordida ele não largava.
Caninos Brancos só parou quando já estava morto de cansaço. Nada podia fazer, e não compreendia. Nunca, em todas as suas lutas, uma coisa dessas lhe acontecera. Os cachorros com que brigava não lutavam dessa maneira. Com eles era mordida, cutilada e recuo, mordida, cutilada e recuo. Apoiou-se parcialmente sobre o lado, ofegando por ar. Cherokee, ainda mantendo a mordida, precipitou-se contra ele, tentando obrigá-lo a deitar-se inteiramente de lado. Caninos Brancos resistiu, e podia sentir as mandíbulas mudando a mordida, relaxando de leve e voltando a se fechar num movimento de mastigação. Cada mudança trazia a mordida mais para perto da sua garganta. O método do buldogue era manter o que tinha, e, quando surgisse oportunidade, procurar aprofundar o golpe. A oportunidade aparecia, quando Caninos Brancos ficava quieto. Quando Caninos Brancos lutava, Cherokee se contentava simplesmente em manter a mordida.
A parte traseira saliente do pescoço de Cherokee era a única porção de seu corpo que os dentes de Caninos Brancos conseguiam alcançar. Ele mordeu em direção à base, naquele ponto em que o pescoço emerge dos ombros; mas não conhecia o método de mastigar como estratégia de luta, nem as suas mandíbulas eram adaptadas para tal coisa. Rasgava e cortava espasmodicamente com as presas em busca de espaço. Depois uma mudança na posição dos dois cachorros o desviou. O buldogue conseguira fazê-lo rolar sobre o lombo e, ainda agarrado à sua garganta, estava em cima dele. Como um gato, Caninos Brancos arqueou os quartos traseiros para dentro e, com as patas cavando no abdômen do inimigo acima dele, começou a arranhar com golpes longos e dilacerantes. Cherokee bem que poderia ter sido estripado, se não tivesse girado rapidamente sobre a sua mordida e tirado o corpo de cima do de Caninos Brancos, ficando em posição de ângulo reto com a sua vítima.
Não havia como escapar daquela mordida. Era como o próprio destino, e inexorável. A mordida se movia lentamente ao longo da jugular. O que salvava Caninos Brancos da morte era só a pele solta de seu pescoço e o pelo espesso que a cobria. Isso servia para formar um grande rolo na boca de Cherokee, e os pelos quase desafiavam os seus dentes. Mas, pouco a pouco, sempre que havia uma chance, ele agarrava mais pele solta e pelo na sua boca. O resultado era que ia lentamente estrangulando Caninos Brancos. A respiração do último ficava cada vez mais difícil a cada momento que se passava.
Começou a parecer que a batalha estava finda. Os apostadores de Cherokee exultavam e ofereciam apostas ridículas. Os apostadores de Caninos Brancos, consequentemente deprimidos, recusavam apostas de dez para um e vinte para um, embora um homem fosse bastante temerário a ponto de aceitar uma parada de cinquenta para um. Esse homem foi Beleza Smith. Ele deu um passo para dentro do círculo e apontou o dedo para Caninos Brancos. Depois começou a rir com desdenho e zombaria. Isso produziu o efeito desejado. Caninos Brancos ficou louco de raiva. Reuniu todas as suas reservas de força e levantou-se sobre as patas. Enquanto lutava ao redor do círculo, os vinte e três quilos do inimigo ainda agarrados na sua garganta, a sua raiva transformou-se em pânico. A vida básica no seu interior o dominou mais uma vez, e a sua inteligência fugiu diante da vontade carnal de viver. Ao redor, para um lado e para o outro, tropeçando, caindo e levantando-se, até erguendo-se às vezes nas patas traseiras e levantando o inimigo da terra, ele lutou em vão para afastar a morte agarrada.
Por fim tombou, desabando para trás, exausto; e o buldogue logo mudou a mordida, chegando mais para dentro, estropiando cada vez mais a carne coberta de pelo, estrangulando Caninos Brancos com mais força que nunca. Gritos de aplauso se elevaram para o vencedor, e escutaram-se muitos gritos de “Cherokee!’ “Cherokee!” A isso Cherokee reagia abanando vigorosamente o seu toco de rabo. Mas o clamor de aprovação não o distraía. Não havia nenhuma relação simpática entre o seu rabo e as suas mandíbulas poderosas. O rabo podia abanar, mas as mandíbulas mantinham a terrível mordida na garganta de Caninos Brancos.
Foi nesse momento que os espectadores tiveram a sua atenção desviada. Houve um tilintar de sinos. Escutaram-se gritos de condutores de cães de trenó. Todos, exceto Beleza Smith, olharam apreensivamente, o medo da polícia forte dentro deles. Mas viram, subindo a trilha, e não descendo, dois homens correndo com o trenó e cachorros. Estavam evidentemente descendo o arroio, vindo de uma viagem de exploração. À vista da multidão, pararam os cachorros e aproximaram-se do grupo, curiosos para ver a causa da comoção. O condutor dos cães tinha um bigode, mas o outro, um homem mais alto e mais jovem, estava barbeado, a pele rosada da pulsação do sangue e da corrida no ar gelado.
Caninos Brancos tinha praticamente parado de lutar. De vez em quando resistia espasmodicamente, mas em vão. Conseguia aspirar um pouco de ar, e esse pouco tornava-se cada vez menos sob a mordida impiedosa que se apertava sem parar. Apesar da sua armadura de pelo, a grande veia da garganta já teria sido aberta há muito tempo, se a primeira mordida do buldogue não tivesse sido tão baixa a ponto de atingir praticamente o peito. Cherokee levara um longo tempo para levar a mordida para cima, e isso só tendera a obstruir as suas mandíbulas com pelo e dobras de pele.
Nesse meio tempo, a besta colossal em Beleza Smith ia subindo para a sua mente e dominando o pouquinho de sanidade mental que ele, quando muito, possuía. Quando viu os olhos de Caninos Brancos começarem a vidrar, soube sem sombra de dúvida que a luta estava perdida. Então perdeu as estribeiras. Pulou sobre Caninos Brancos e começou a chutá-lo selvagemente. Vieram assobios da multidão e gritos de protesto, mas foi tudo. Enquanto isso se prolongava, e Beleza Smith continuava a chutar Caninos Brancos, houve uma comoção na multidão. O recém-chegado jovem e alto forçava a passagem pelo grupo, acotovelando os homens à direita e à esquerda sem cerimônia, nem gentileza. Quando irrompeu dentro do círculo, Beleza Smith estava justamente no ato de dar mais um chute. Todo o seu peso estava sobre um dos pés, e ele se encontrava num estado de equilíbrio instável. Nesse momento, o punho do recém-chegado desfechou um golpe esmagador bem no meio da sua face. A perna restante de Beleza Smith deixou o chão, e todo o seu corpo pareceu elevar-se no ar, enquanto ele virava e caía sobre a neve. O recém-chegado virou-se para a multidão.
Covardes! – gritou. – Animais!
Ele próprio estava enfurecido – uma raiva sadia. Os olhos cinzentos pareciam metal e aço, enquanto relampejavam sobre a multidão. Beleza Smith levantou-se e veio na sua direção, choramingando como um covarde. O recém-chegado não compreendeu. Não sabia que covarde abjeto o outro era, e pensou que ele estava voltando com a intenção de lutar. Assim, com um “Animal!”, jogou Beleza Smith longe com um segundo soco esmagador na face. Beleza Smith decidiu que a neve era o lugar mais seguro, e continuou deitado onde tinha caído, sem fazer esforços para se levantar.
Vamos, Matt, me dê uma mão – gritou o recém-chegado para o condutor de cães, que o tinha seguido até o círculo.
Os dois homens se inclinaram sobre os cachorros. Matt segurou Caninos Brancos, pronto a puxar assim que as mandíbulas de Cherokee fossem abertas. Isso o homem mais jovem procurava fazer, agarrando as mandíbulas do buldogue nas mãos e tentando separá-las. Era uma tarefa vã. Enquanto ele puxava, estirava e distendia, não parava de exclamar a cada expulsão de ar “Animais!”
A multidão começou a ficar tumultuada, e alguns dos homens protestavam contra o fim do espetáculo. Mas foram silenciados quando o recém-chegado levantou a cabeça por um momento e fitou-os.
Malditos animais! – explodiu finalmente e voltou à sua tarefa.
Não adianta, Sr. Scott, não vai conseguir separá-las dessa maneira – disse Matt por fim.
O par fez uma pausa e observou os cachorros trancados.
Não está sangrando muito – anunciou Matt. – Ainda não entrou até o fim.
Mas vai entrar a qualquer momento – respondeu Scott. – Ei, você viu isso! Ele aprofundou a mordida um pouco mais.
A comoção e apreensão do homem mais jovem por Caninos Brancos era crescente. Bateu selvagemente na cabeça de Cherokee mais de uma vez. Mas isso não afrouxava as mandíbulas. Cherokee abanava o toco de rabo avisando que compreendia o significado dos golpes, mas que ele sabia que estava certo, apenas cumprindo seu dever ao manter a mordida.
Ninguém pode ajudar? – Scott gritou desesperadamente para a multidão.
Mas ninguém ofereceu ajuda. Em vez disso, a multidão começou sarcasticamente a encorajá-lo e a cobri-lo de conselhos jocosos.
Você vai ter que arrumar uma alavanca – aconselhou Matt.
O outro pôs a mão no coldre na sua anca, tirou o revólver e tentou enfiar a boca da arma entre as mandíbulas do buldogue. Empurrou, e empurrou com força, até se poder ouvir distintamente o ranger do aço contra os dentes trancados. Os dois homens estavam de joelhos, inclinados sobre os cachorros. Tim Keenan entrou no círculo a passos largos. Parou ao lado de Scott e tocou-lhe o ombro, dizendo ameaçador:
Não quebre os dentes dele, estranho.
Então vou quebrar o seu pescoço – respondeu Scott, continuando a empurrar e introduzir a boca do revólver.
Disse para não quebrar os dentes dele – repetiu o carteador negociante mais ameaçador do que antes.
Mas, se pretendia blefar, não funcionou. Scott não desistiu de seus esforços, embora olhasse friamente para cima e perguntasse:
Seu cachorro?
O carteador resmungou.
Então chegue aqui e desfaça essa mordida.
Bem, estranho – o outro arrastava as palavras irritantemente. – Não me importo de lhe dizer que isso é algo que nunca consegui fazer. Não sei como se faz o truque.
Então saia do caminho – foi a resposta – e não me incomode. Estou ocupado.
Tim Keenan continuou de pé ao seu lado, mas Scott não prestou mais atenção à sua presença. Conseguira colocar a boca da arma entre as mandíbulas num lado, e estava tentando fazê-la sair entre as mandíbulas no outro lado. Feito isso, começou a abrir a mordida com a alavanca improvisada, gentil e cuidadosamente, afrouxando as mandíbulas um pouco de cada vez, enquanto Matt, um pouco de cada vez, soltava o pescoço estropiado de Caninos Brancos.
Fique perto para receber o seu cachorro – foi a ordem peremptória de Scott para o dono de Cherokee.
O carteador negociante inclinou-se obedientemente e segurou Cherokee com firmeza.
Agora – avisou Scott, dando o último golpe na alavanca.
Os cachorros foram separados, o buldogue lutando vigorosamente.
Leve seu cachorro embora – comandou Scott, e Tim Keenan arrastou Cherokee de volta para a multidão.
Caninos Brancos fez vários esforços inúteis para se levantar. Uma vez ergueu-se sobre as patas, mas as pernas estavam fracas demais para sustê-lo, e ele lentamente esmoreceu e afundou de novo na neve. Os olhos estavam meio fechados, e sua superfície vidrada. As mandíbulas estavam abertas, e por entre as duas caía para fora a língua, suja e mole. Para todos os efeitos, ele parecia um cachorro estrangulado. Matt o examinou.
Entrou quase até o fim – anunciou –, mas ele está respirando bem.
Beleza Smith tinha se levantado e aproximou-se para olhar Caninos Brancos.
Matt, quanto vale um bom cão de trenó? – perguntou Scott.
O condutor, ainda de joelhos e inclinado sobre Caninos Brancos, calculou por um momento.
Trezentos dólares – respondeu.
E quanto vale um todo estropiado como este? – perguntou Scott, cutucando Caninos Brancos com o pé.
Metade disso – foi o julgamento do condutor.
Scott virou-se para Beleza Smith.
Ouviu, sr. Animal? Vou tirar o cachorro de você, e vou lhe pagar cento e cinquenta por ele.
Abriu a carteira e contou as notas.
Beleza Smith pôs as mãos nas costas, recusando-se a tocar no dinheiro oferecido.
Não estou vendendo – disse.
Oh, sim, está – o outro lhe assegurou. – Porque eu estou comprando. Aqui está o dinheiro. O cachorro é meu.
Beleza Smith, as mãos ainda nas costas, começou a recuar.
Scott pulou na sua direção, o punho para trás para acertar outro soco. Beleza Smith encolheu-se esperando o golpe.
Tenho meus direitos – choramingou.
Você perdeu o direito de ser o dono desse cachorro – foi a resposta. – Vai pegar o dinheiro? Ou vou ter que lhe dar outro soco?
Está bem – falou Beleza Smith com a vivacidade do medo. – Mas pego o dinheiro sob protesto – acrescentou. – O cachorro é um tesouro. Não vou ser roubado. Um homem tem os seus direitos.
Correto – respondeu Scott, entregando-lhe o dinheiro. – Um homem tem os seus direitos. Mas você não é um homem. Você é um animal.
Espere até eu chegar a Dawson – ameaçou Beleza Smith. – Vou pôr a lei no seu encalço.
Se abrir a boca quando chegar a Dawson, vou mandar que o expulsem da cidade. Entendeu?
Beleza Smith respondeu com um resmungo.
Compreendeu? – o outro trovejou com uma ferocidade abrupta.
Sim – respondeu Beleza Smith, afastando-se encolhido.
Sim o quê?
Sim, senhor – rosnou Beleza Smith.
Cuidado! Ele morde! – alguém gritou, e uma gargalhada subiu no ar.
Scott deu-lhe as costas e voltou a ajudar o condutor, que estava cuidando de Caninos Brancos.
Alguns dos homens já partiam, outros ainda ficavam em grupos, observando e conversando. Tim Keenan juntou-se a um desses grupos.
Quem é esse trouxa? – perguntou. – Weedon Scott – alguém respondeu.
E quem diabos é Weedon Scott? – perguntou o carteador negociante.
Oh, um desses técnicos batutas das minas. Íntimo de todos os figurões. Se não quiser encrenca, fique longe dele, é o que digo. Tem ótimas relações com as autoridades. O Comissário do Ouro é um amigo especial seu.
Achei que devia ser alguém – foi o comentário do carteador. – É por isso que não pus as mãos nele no início.
Jack London, in Caninos Brancos

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