A
primeira referência em grego, portanto provavelmente a primeira na
história da literatura ocidental, à prática de escrever está no
livro 6 da Ilíada, e não é boa. Alguém é encarregado de
levar “sinais mortíferos”, a inscrição numa lousa, a outro
alguém. No tempo da Ilíada, as histórias eram transmitidas
oralmente, não havia um texto atribuível com certeza a Homero ou
sequer certeza de que existia um Homero. Para o público da época, a
escrita era algo remoto e misterioso, e as marcas cunhadas em pedra
ou argila, como descritas na Ilíada, um código esotérico e
certamente sinistro. As marcas aprisionavam e imobilizavam as
palavras, levavam-nas para outro domínio e lhes davam outro poder,
diferente do poder comum, e do sortilégio compartilhado, da palavra
dita. Por isso a escrita estreou na literatura caracterizada como
mortífera.
Séculos
depois de Homero, outro poeta, W. B. Yeats, diria que fazia seus
versos de “bocados de ar”, e Anthony Burgess, que usou a frase de
Yeats — A Mouthful of Air — como título num livro seu
sobre linguagem, escreveu que a primeira realidade da literatura é
essa mesmo, um bocado de ar transformado pelos órgãos vocais,
enquanto a escrita e a impressão são suas realidades secundárias.
Mas é a palavra escrita que dá permanência à linguagem, mesmo ao
preço de roubá-la da sua vulgaridade democrática, e quase toda a
nossa experiência literária é feita dessa segunda realidade. Ao
contrário dos gregos antigos, só “ouvimos” os poetas dentro da
nossa cabeça, e preferimos assim. Lembro-me da decepção que foi
ouvir uma gravação do T. S. Eliot declamando seus próprios poemas.
Era uma leitura tão diferente da minha, silenciosa, que concluí que
ele não entendia o que tinha escrito.
Pode-se
dizer que, assim como ninguém tem prazer em ler uma partitura
musical sem som, é na partitura — nos sinais escritos — de um
poema, ao contrário da sua oralização, que está a musicalidade.
Por melhor que seja o declamador, ele nunca se igualará ao leitor
ideal de um texto favorito, você mesmo para você mesmo. Com o
tempo, os sinais mortíferos perderam seu estigma e se transformaram
na única maneira de compartilhar do sortilégio, inclusive do
Homero.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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