Do
avião saltamos para a jardineira, a caminho da cidade. A princípio,
só o trajeto aborrecido, na pressa de chegar. Que fazer desses ermos
lobrigados de passagem, que não sensibilizam a vista, e daqui a
pouco esqueceremos na contemplação de outras formas naturais menos
secas? Há uma lagoa na região, e não se deixa ver. De repente
começamos a sentir que essa terra humilde vai nos interessando, em
seu desconforto. O mato dos barrancos perdeu o verde nativo; tudo
ficou vermelho, amarelo ou pardo, tocado de pó incansável. Como se
chamam esses vegetais, só Riobaldo Tatarana sabe, e hei de
consultá-lo na volta. A paisagem toca pelo que não tem, pela
pobreza calma. Não há imprevisto. Nos pastos de grama pouca, só as
grandes bossas dos cupins se expõem, bichos imobilizados. E à paz
do campo mineiro se ajunta, aprofundando-a, a paz do domingo mineiro.
Nunca
será tão domingo como aqui, e domingos e domingas de eternidade se
concentram em vigorosa dominicalização. Não acontecer nada, que
beatitude! Deixar o mato crescer — mas o próprio mato foge à
obrigação, e goza o domingo. Lá estão o touro zebu e seu harém
de nobres e modestas vacas — porque o zebu alia à majestade
indiana a placidez das Minas, e boi nenhum se fez tão mineiro quanto
esse, e bicho nenhum é tão mineiro quanto o boi, em seu calado
conhecimento da vida, sua participação no trabalho. O rebanho
amontoa-se em círculo, algumas reses em pé, outras deitadas,
chifres cumprimentando-se sem ruído. Parece um só boi espalhado,
maginando. Com o pincel do rabo, executa o milenar movimento de
repelir a mosca, se é que não o pratica pelo prazer de abanar-se.
Mas há bois esparsos, bois solitários, que se postam junto a
árvores, aparentemente recolhidos; ou fitam o carro que levanta
poeira sobre a poeira habitual, e ruminam não sei que novelas de
boi.
A
terra é um universal domingo, as estampas não se destacam,
desaparecem na série. Figura humana é que custa a aparecer. Só o
garotinho que brincava no barro, entre galinhas, e o braço de homem,
no fundo escuro da casa desbeiçada, erguendo a garrafa.
Gente
começa afinal a surgir, desembocando da ruazinha de arraial, em
caminhões alegres, com inscrições: “Deus e pé na tábua”,
“Chiquinha casa comigo”, e um ar de festa que é também
domingueiro, festa nas roupas claras, nos lenços coloridos das
cabeças; no riso largo, nos gritos. Rapazes de calção, viajando de
pé, aos berros. Vão disputar a grande partida em um dos dez lugares
da redondeza, onde o futebol resolveu o problema da felicidade
repartindo-a com todos, do meritíssimo doutor juiz de direito aos
presos da cadeia, que assistem atrás de grades ou por informação,
e tomam conhecimento do gol do seu clube pelo ruído particular dos
foguetes. As moças vão também, salve, ó moças! Já não têm
nenhum ar especificamente montanhês, o cabelo aparado em pontas
irregulares, a calça comprida e justa internacionalizaram há muito
o tipo feminino, as garotas não são mais da França, da Turquia ou
do Ceará, são todas de capa de revista, e mesmo assim continuam
sendo a bem-aventurança e o licor da Terra, e passam chispando no
caminhão Fenemê, e desacatam o policial do posto da divisa, e vão
entoando o sagrado nome do clube e a vitória certa.
Há
também o bêbedo da estrada. Não é patético como o dos poetas
neorromânticos que exploram o gênero, é simplesmente bêbedo, sem
pretensões, também ele universal na pureza de sua
irresponsabilidade. Está a mil sonhos do futebol, mas a parada do
caminhão para tomar água lhe comunica a chama do esporte, e ei-lo
que engrola a exortação enérgica:
— Vocês
me tragam a vitó… a vitóooria! Eu fico esperando a vit…
Todos
aplaudem freneticamente. Mas as pernas arriam, e ele fica ali,
desmanchado, à sombra da goiabeira, dormindo na manhã de Minas
Gerais.
Carlos
Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida
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