Castigo
terrível enviou Deus sobre os soldados do exército dos filisteus
como punição por haverem roubado aquilo que de mais sagrado havia
para o povo escolhido, a Arca onde estavam guardadas as tábuas com
os dez mandamentos. O castigo terrível foi que todos os soldados
filisteus foram atacados de hemorroidas. E diz o texto que o seu
sofrimento era tão grande que os seus gemidos eram ouvidos de muito
longe (1Sm 5,12). Pois, se eu fosse Deus, enviaria praga parecida
contra todos os que espalham o boato de que ele tem uma câmara de
torturas particular, para seu deleite eterno, chamada Inferno. Não
posso imaginar nada mais horrendo que se possa falar contra Deus,
pois é inimaginável que um Deus de amor castigue, com sofrimentos
eternos, pecados que foram cometidos no tempo. E esses maledicentes
ainda justificam seus boatos dizendo que Deus faz isso por ser justo,
sem se dar conta de que a justiça divina é aquilo que Deus faz para
curar a sua Criação de qualquer tipo de sofrimento. É Jesus que
diz: “Se vós, sendo maus, sabeis dar presentes bons aos vossos
filhos, quanto mais Deus!”.
Os
meus argumentos não foram suficientes, e houve aqueles que me
acusaram de heresia, por não acreditar no que está dito nos textos
sagrados. Argumentam: “Não foi o próprio Jesus que contou a
parábola do Rico e do Lázaro, o Lázaro indo para o Céu depois da
morte e o Rico indo para o Inferno? Se Jesus falou, há de se
acreditar”.
Pois
eu acredito. Acredito nas parábolas como acredito nos poemas. Poemas
e parábolas são metáforas que falam sobre os cenários da alma
humana. Um psicanalista diria: são sonhos que lançam luz nos porões
escuros do inconsciente. Lembro-me de uma mulher que me relatou que,
num sonho, tinha um furúnculo dentro da cabeça, bem ao lado do
ouvido, o furúnculo latejava e doía muito. Até que,
repentinamente, o furúnculo começou a vazar pelo ouvido. E o que
saía pelo ouvido — pasmem — não era pus. Saíam sementes de
maracujá! Doido seria eu se interpretasse o sonho literalmente e
enviasse a mulher a um neurocirurgião para extrair o dito furúnculo.
Esse sonho foi uma estória por meio da qual o inconsciente dela lhe
revelava, de maneira gentil e bem-humorada, um sofrimento e um prazer
que ela se recusava conscientemente a compreender. É claro que não
havia furúnculo algum dentro da sua cabeça. O furúnculo estava
dentro da sua alma, que tratava de expelir as sementes de maracujá.
O que eram elas, as sementes de maracujá? Noutro dia eu conto...
Todo mundo sabe a estória de Davi, rei-poeta, que seduziu Betsebá,
mulher de um dos seus generais, engravidando-a. Para esconder o seu
pecado, mandou matar Urias, marido de Betsebá. Natan, profeta,
dirigiu-se ao rei e lhe contou esta parábola: “Um homem tinha mil
ovelhas. O seu vizinho tinha uma única ovelha, que ele muito amava.
Pois o que tinha mil ovelhas, querendo comer um churrasco, roubou e
matou a única ovelha do seu vizinho pobre”. Contada a parábola, o
profeta perguntou ao rei: “Que castigo merece esse homem?”. Davi
respondeu: “Que esse homem seja punido com a morte”. Ao que o
profeta lhe disse: “Esse homem és tu”. O rico, dono de mil
ovelhas, nunca existiu. Nem existiu o pobre, dono de uma ovelha. O
profeta falou por meio de metáforas. Parábolas não têm o
propósito de dar informações verdadeiras do mundo de fora. O seu
objetivo é revelar o mundo de dentro.
O
mesmo é para ser dito das parábolas de Jesus. O filho pródigo, o
filho-modelo e o pai bondoso nunca existiram. E nunca existiu também
a mulher que perdeu a moeda. Nem o bom samaritano e o pobre espancado
pelos ladrões. Essas são estórias, nunca aconteceram. Nunca
aconteceram porque acontecem sempre, na alma da gente. Quem acredita
que elas aconteceram de fato, em algum lugar do passado, não está
percebendo que elas falam sobre o que está acontecendo aqui, no
presente.
Se
vão acreditar nas parábolas literalmente, então há de se
acreditar numa outra parábola que Jesus contou, sobre um homem que
se casou com dez virgens, núpcias na mesma noite (Mt 25,1-12). Se
essa parábola for interpretada literalmente, ela está dizendo que
Jesus aprovava a poligamia... E se isso é verdadeiro para o Reino
dos Céus, tem de ser verdadeiro também para a terra…
Rubem
Alves,
in Pimentas: para
provocar um incêndio, não é preciso fogo
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