domingo, 10 de novembro de 2019

Capítulo 144 - Utilidade relativa

Mas a noite, que é boa conselheira, ponderou que a cortesia mandava obedecer aos desejos da minha antiga dama. – Letras vencidas, urge pagá-las, disse eu ao levantar-me. Depois do almoço fui à casa de Dona Plácida; achei um molho de ossos, envolto em molambos, estendido sobre um catre velho e nauseabundo; dei-lhe algum dinheiro. No dia seguinte fi-la transportar para a Misericórdia; onde ela morreu uma semana depois. Minto: amanheceu morta; saiu da vida às escondidas, tal qual entrara. Outra vez perguntei, a mim mesmo, como no capítulo 75, se era para isto que o sacristão da Sé e a doceira trouxeram Dona Plácida à luz, num momento de simpatia específica. Mas adverti logo que, se não fosse Dona Plácida, talvez os meus amores com Virgília tivessem sido interrompidos, ou imediatamente quebrados, em plena efervescência; tal foi, portanto, a utilidade da vida de Dona Plácida. Utilidade relativa, convenho; mas que diacho há absoluto nesse mundo?
Machado de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas

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