domingo, 10 de novembro de 2019

O acidente

Muitas vezes, ao olhar os espelhos, via-o atrás de mim. Agora não o vejo mais. Talvez por ver tão mal (benefícios da cegueira), talvez porque mudamos de espelhos. Assim que recebi o dinheiro do apartamento, comprei espelhos novos. Desfiz-me dos antigos. O meu vizinho estranhou:
A única coisa em condições neste seu apartamento são os espelhos.
Não! Irritei-me: Os espelhos estão assombrados.
Assombrados?!
Sim, vizinho. Cheios de sombras. Passaram demasiado tempo em estado de solidão.
Não lhe quis dizer que, muitas vezes, ao olhar para os espelhos, via debruçar-se sobre mim o homem que me violou. Naquela época eu ainda saía de casa. Levava uma vida quase normal. Ia e vinha do liceu, de bicicleta. No verão alugávamos uma casa, na Costa Nova. Eu nadava. Gostava de nadar. Uma tarde, ao chegar a casa, vinda da praia, dei pela falta de um livro que estava a ler. Retornei, sozinha, à procura dele. Havia uma fila de barraquinhas montadas na areia. A noite caíra, entretanto, e estavam desertas. Dirigi-me à barraquinha onde tínhamos estado. Entrei. Ouvi um ruído, e, ao voltar-me, vi um sujeito à porta, sorrindo para mim. Reconheci-o. Costumava vê-lo, num bar, a jogar às cartas com o meu pai. Ia explicar-lhe o que estava ali a fazer. Não tive tempo. Quando dei por isso já ele estava sobre mim. Rasgou-me o vestido, arrancou-me as calcinhas, e penetrou-me. Lembro-me do cheiro. Das mãos, ásperas, duras, apertando-me os seios. Gritei. Bateu-me no rosto, pancadas fortes, sincopadas, não com ódio, não com fúria, como se estivesse a divertir-se. Calei-me. Cheguei a casa aos soluços, o vestido rasgado, cheio de sangue, o rosto inchado. O meu pai compreendeu tudo. Perdeu a cabeça. Esbofeteou-me. Enquanto me açoitava, com o cinto, gritava comigo, puta, vadia, desgraçada. Ainda hoje o ouço: Puta! Puta! A minha mãe agarrada a ele. A minha irmã em prantos.
Nunca soube ao certo o que aconteceu ao homem que me violou. Era pescador. Dizem que fugiu para Espanha. Desapareceu. Engravidei. Fechei-me num quarto. Fecharam-me num quarto. Ouvia, lá fora, as pessoas a segredarem. Quando chegou o momento, uma parteira veio ajudar-me. Nem cheguei a ver o rosto da minha filha. Tiraram-na de mim.
A vergonha.
A vergonha é que me impedia de sair de casa. O meu pai morreu sem nunca mais me dirigir a palavra. Eu entrava na sala e ele levantava-se e ia-se embora. Passaram-se anos, morreu. Meses depois a minha mãe seguiu-o. Mudei-me para a casa da minha irmã. Pouco a pouco fui-me esquecendo. Todos os dias pensava na minha filha. Todos os dias me exercitava para não pensar nela.
Nunca mais consegui sair à rua sem experimentar uma vergonha profunda.
Agora passou. Saio à rua e já não sinto vergonha. Não sinto medo. Saio à rua e as quitandeiras cumprimentam-me. Riem-se para mim, como parentes próximas.
As crianças brincam comigo, dão-me a mão. Não sei se por eu ser muito velha, se por eu ser tão criança quanto elas.
José Eduardo Agualusa, in Teoria Geral do Esquecimento

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