sábado, 26 de outubro de 2019

Um dia cheio de revelações chocantes: a Casa dos Vidros de Água, a instalação dos geradores solares e a ação das multi-internacionais

Vejo prateleiras quebradas, o chão repleto de cacos. Homens recolhendo etiquetas de metal. Civiltares vigiando, presos entrando nos camburões. A Casa dos Vidros de Água em ruínas. As salas que conheço palmo a palmo, vidro a vidro, cada objeto. Salas que eram meu refúgio.
Os presos: banguelas, mulatos de olhar agressivo, nordestinos mirrados, amarelos, orientais baixotes, gente sem nariz, sem orelhas, sem cabelos, olhos pendentes, peles escamadas, tocos de braço, furo na mão. Furo na mão? Pena, o homem já entrou. Tenho certeza, era um furo igual ao meu.
O locutor tem a voz grave, cerimoniosa, dos que proclamam os noticiários oficiais na Rádio Geral. Um Civiltar exibe um vidro de água. O único que restou inteiro. Água do Tucumã. Onde, diabos, ficava esse Tucumã? Imagens do prefeito, do chefe estadual, do diretor do museu. E a voz monótona.

Às catorze horas de hoje, o Museu dos Rios Brasileiros, conhecido popularmente pela designação de a Casa dos Vidros de Água, localizado no que antigamente foi o Largo do Arouche, recebeu uma afluência fora do comum. De repente, para espanto dos vigilantes, centenas de pessoas começaram a entrar e a se espalhar. Aparentemente, queriam apenas olhar os milhares de litros que continham as águas dos rios, riachos, ribeirões, nascentes, lagos, lagoas, fontes e olhos de água de todo o Brasil. A Casa dos Vidros de Água foi o mais completo e admirado museu hidrográfico do mundo, apreciado por especialistas do universo inteiro, que ali sempre fizeram suas pesquisas hídricas. Organizado na década de oitenta por cientistas da Universidade de São Paulo, do Rio Grande do Sul, do Espírito Santo e da Paraíba, teve a colaboração de pesquisadores de todo o país. A cooperação popular foi grande. Levou-se doze anos para se atingir a perfeição atual. Em dezenas de salas, cada uma abrangendo uma região, podiam-se ver os litros, de colorações diferentes, além de gravuras, fotos, mapas, gráficos, legendas. A biblioteca e a filmoteca completavam o conjunto. A discoteca guardava relíquias, como o ruído das cachoeiras, principalmente da Foz do Iguaçu, o som da extinta pororoca, o murmúrio de regatos. Quando os vigilantes se despreocuparam, relaxando a fiscalização, tudo aconteceu. Em questão de minutos. Sem que houvesse qualquer chance de impedir. As pessoas passaram a abrir os vidros e a beber a água. Bebiam e se molhavam. Saíam com as roupas ensopadas. Quando os Cilviltares chegaram, minutos depois, sobrava um só vidro fechado. A maioria dos depredadores fugiu, arrebentando portas e janelas. Alguns foram presos. Suspeita-se que tenham sido aliciados por alguma organização. Sabe-se que, no começo da tarde, espalhou-se o boato de que a Casa dos Vidros de Água estava sem corpo de guarda. E que havia muita água estocada lá dentro.
Um dos presos, durante a verificação, disse:
Quem é que queria ver água de rio? A gente tinha sede, isso sim. Então fomos beber a água que era nossa por direito. Eu procurei a água de um riacho que passava atrás de minha cidade. Um rio onde nadava quando criança. Foi dele que bebi. A água está aqui na minha barriga. Podem tirar se quiser.
Pessoas entrevistadas disseram que ninguém suportou o calor hoje. Foi o dia mais quente do ano, registrado nos institutos oficiais. O sol deve ter alterado o comportamento de todo mundo. Meteorologistas acentuam que a temperatura tende a subir, ainda mais que nos aproximamos dos meses que, em outros tempos, correspondiam ao verão. O Esquema está de prontidão para tomar duas providências: impedir que a migração para esta cidade continue, uma vez que ela é causa de graves problemas; em segundo lugar, adotar medidas, como a construção de gigantesca Marquise para proteger o povo do sol e da intensa onda de calor que se abate sobre o país.

Comercial do Esquema. Imagens de poços artesianos se sobrepõem a planos dos leitos secos dos rios. Os rios desaparecem, a água jorra cristalina dos poços artesianos. Milhares de copos plásticos correm em esteiras nas máquinas de encher e lacrar. Crianças riem felizes, a música de fundo é clássica, otimista.
A voz oficial anuncia: “Dentro de dois minutos e trinta e dois segundos, novas notícias sobre o atentado ao Museu dos Rios Brasileiros. Informações vindas diretamente dos bastidores do governo. E uma curiosidade. A reexibição de um velho documentário, hoje um clássico do curta-metragem histórico: O corte final. Aguardem”.
Outro comercial mostra a instalação dos geradores de energia solar. Cidades recebendo com festas os técnicos do Esquema. Não se vê o povo, somente as faixas de boas-vindas, os slogans pintados. Trilhas sonoras emitem aplausos, gritos de muito bem, muito bem, viva o Esquema. Sinos e buzinas.
Sucata. Mais porcaria em cima da gente – disse o terceiro homem, o que está sempre silencioso.
Ferro-velho. Tudo que estão mostrando é sucata. Veio da Alemanha? Veio nada. Estava em funcionamento na Multinteralemã que funciona onde era Pernambuco e Rio Grande do Norte. Forneceu energia por dez anos, deve ter sido substituído por material mais moderno. Ou por maquinaria que suporte esse sol. O ferro-velho, vendem ao Brasil.
Como é que você sabe? Como é que vocês sabem? Cada coisa que acontece, um de vocês vem como uma explicação, uma história.
Sei porque vi.
Viu? Essa não! Você e esse outro aí que senta na ponta da mesa viram tudo. Que mania é essa de sentar sempre na ponta da mesa?
Qual é? Tanto para se preocupar e vem me perguntar por que me sento na ponta da mesa? Aposto que a vida inteira se preocupou com besteirinhas. Quem se senta na ponta da mesa, quem fuma o cigarro até o toquinho, quem usa lenço verde para assoar o nariz. Ah, deixa a gente sossegado! Vai viver sua vida.
Está bem. Vou viver minha vida e vocês tratem das suas. Fora daqui. Fora. Já e já. Fora. Para outro lugar, que a casa é minha!
Vamos viver juntos por algum tempo. Quer queira, ou não!
É minha! E podem arrumar a trouxa!
Por que não tenta tirar a gente?
Vou conseguir. O que vocês estão fazendo não é certo!
Pode ser que não. Não é certo por que padrões? Existe algum? Ou cada um tem o seu? Talvez cada grupo tenha estabelecido para si mesmo um padrão necessário à sua sobrevivência. O Esquema desligou-se. É uma coisa, o país outra, o povo uma terceira. O Esquema existe como segurança. Ou melhor, tentativa de segurança. Amarra as pontas para que todos não se matem. E olhe que os nós estão frouxos. Enquanto o Esquema conseguir suprir razoavelmente as barrigas, a estrutura se sustenta. E quanto tempo vai conseguir? Que preço já pagou só com a importação contínua de alimento? Olha, nós já formamos o nosso grupinho aqui, temos apenas de estabelecer as nossas regras, montar o nosso mundo. Agora, meu amigo, é confiar.
Confiar? Em quê?
Fiz sinal para que esperasse. Música familiar na televisão. A câmera passeia no vazio, fecho os olhos. Conheço bem essas imagens. Os violinos do fundo, metais, tom épico. Corrida acelerada. Tranquilidade. Novamente crescendo, pratos batem. Mussorgsky, Uma noite no Monte Calvo.
Florestas tomam a tela. A música se dissolve, imagens se fixam. A voz oficial:

Os vândalos que invadiram a Casa dos Vidros de Água, esta tarde, não pouparam sequer os preciosos arquivos. Fotos, filmes, tapes, gravações, documentos, foram queimados, rasgados, dilacerados, destruídos. Não se entendeu por quê, uma vez que os invasores declararam que apenas queriam beber água. Nada mais. O que teria levado homens a destroçar o acervo torna-se um mistério que os Civiltares, preocupados, estão ansiosos para desvendar. Os presos estão submetidos ao tratamento habitual. Esse tratamento persuasório, científico e indolor, destina-se a fazer com que narrem, de espontânea vontade, como os fatos se passaram. O objetivo é determinar, como se suspeita, se houve um provocador. Este o perigo. Como é de conhecimento, o Esquema preocupa-se com a manutenção da história. Foi encontrado pouquíssimo material intacto. O corte final salvou-se. É uma curiosidade, telejornal sem maiores pretensões artísticas. Trata-se de uma reportagem, filmada em super-8 por um amador. Todos, porém, sabem a importância histórica desse curta-metragem. Quando exibido pela primeira vez, provocou polêmica, debate, manifestações de rua, passeatas, divisões na área militar, protestos internacionais. Intensa agitação dentro do país. Movimento que o governo, naquele tempo, não teve forças para dominar. Era a anarquia, a corrupção, o caos absoluto. O corte final foi um pequeno filme, despretensioso, malfeito, mas que, no entanto, favoreceu a queda da elite que formou a Era da Grande Locupletação, possibilitando os primeiros passos para a instalação do atual Esquema. Que, como todos sentem, resolveu os graves problemas internos e externos deste país. Veja, agora, a cerimônia do corte da última árvore do Brasil na pequena vila de Santa Úrsula.

A música cresceu, as imagens movimentaram-se. Planos de florestas. Pântanos, lagos, rios, cachoeiras, regatos, troncos colossais, o locutor enumerando espécies. Não fossem belíssimas as fotos de árvores extintas há tanto, seria um filme aborrecidíssimo, sem a mínima imaginação. Quantas vezes vi essa fita?
Santa Úrsula? Ah, essa cidade nunca existiu – disse o homem que comia doces.
Como não? Você também é um sabe-tudo? Todo mundo sabe que Santa Úrsula foi inundada quando construíram a barragem hidroelétrica da Manguinhos.
Disseram. Quem prova? Manguinhos sumiu no terremoto.
Por que você sabe?
Na Paraíba, eu trabalhava no Instituto Geográfico e Estatístico. Quando fizeram aquele barulho todo com o filminho, pesquisei. Não havia registro de Santa Úrsula.
Deve ter pesquisado errado.
No vale do São Francisco existia uma Santa Úrsula. Comparei fatos, escrevi para lá. Havia uma coisa que não batia. A vila do filme nada tinha a ver com as fotos que eu consegui. Era diferente.
E daí?
O filme foi forjado, a cerimônia, tudo.
Forjado? Com que intenção?
De repente, não me deu vontade de rever o documentário. Não pelo que o homem me contava. Não acreditava numa palavra dos casos deles. Ficar encerrado dentro de casa dá nisso. Para se divertir, inventam histórias. Eles sabem tudo. Essa não! Desliguei a tevê, me lembrei da conversa interrompida.
Você me falava qualquer coisa – eu disse ao homem que se sentava sempre na ponta da mesa.
Falava... falava em confiança... ou coisa assim.
Pois é, dizia que era preciso confiar. No quê?
Não sei direito. Nas pessoas. Na ética de cada um, no comportamento. Tenho dúvida quando uso a palavra ética. Não faz sentido numa situação como a nossa. Mas ainda acredito em cada homem em particular. O problema é que estamos todos preocupados com a sobrevivência. Muitos estão de tal modo que se encontram dispostos a matar.
Sua teoria pode ser lógica. Mas não lhe dá o direito de permanecer em minha casa. Paguei por ela, vivi a vida inteira aqui, lutei. Esta casa sou eu.
Uma tristeza. Se a sua vida é só esta casa, que vida foi a sua? Não, não precisa responder. O que o senhor não sabe é que também eu, também estes homens que estão aqui tivemos nossa casa um dia. Se ainda não derrubaram a minha, deve ter um belga morando nela. Na daquele ali, esse que come doce o tempo inteiro, tem um sul-africano. Na do outro, um bom de um chinês. Não foi só a casa, não. Tivemos de sair de nosso pedaço, das cidades. Expulsos simplesmente, sem ter a quem recorrer. Expatriados. Ser um expatriado dentro do seu próprio país? Fomos empurrados para fora de nossos estados. Um dia, nos embarcaram em ônibus e nos levaram. Nos abandonaram a duzentos quilômetros de Maceió.
Quando foi isso?
Há uns dois anos. Chegava gente de todos os lados. Famílias inteiras expulsas das Multinter. Os estrangeiros traziam sua própria gente. Quando utilizavam brasileiros era para serviços braçais, servis. Faziam conosco a mesma coisa que fizemos com os negros e índios, quinhentos anos atrás.
E o governo?
As reservas foram entregues incondicionalmente. Eram território estrangeiro, com leis próprias, uma estrutura trazida pronta dos países de origem. Não intervenção fazia parte dos acordos.
Não posso acreditar.
De onde acha que esse povo vem? Por que vem?
Tenho um amigo, ex-professor como eu, Tadeu Pereira. Me falava sobre as migrações. Coisas que você está me repetindo. Eu me pergunto aonde é que vamos chegar?
Você era professor? De quê?
História.
Não trabalha mais? Parece novo para ser aposentado.
Compulsória.
Ah.
O senhor é uma pessoa estranha, senhor...
Souza.
Muita estranha! Apático, enquanto o mundo se arrebenta em volta. O senhor não reage, está indiferente a tudo. Desde ontem, observo. Hoje, provoquei. Quando disse que não ia sair de sua casa, estava fazendo um teste. O senhor se conformou. Teve um esboço de irritação. Qualquer outro teria colocado a gente para fora aos pontapés. É difícil acreditar que seja professor de História. O senhor está parado no tempo, impassível, não dá para imaginar que algum dia tenha provocado uma compulsória. Não consigo vê-lo fazendo qualquer coisa que desagrade ao Esquema e o obrigue a agir com violência. O que foi que o levou a se transformar desse jeito?
Talvez eu saiba. Há muitas coordenadas soltas, é só juntá-las. Não é difícil. Nem um pouco. Esse homem vai rir se eu disser que minha cabeça se abriu a partir deste furo na mão. Às vezes olho para ele e penso que não existe. Não está aí. É um produto de minha alucinação. Do sol sobre a cabeça.
Imaginei. Foi o meu modo de readquirir consciência. Durante anos, senti meu cérebro fechado. Por mais lúcido que um homem seja, há um ponto sem retorno. Atingido esse ponto, a consciência mergulha em estado cataléptico. No entanto o inconsciente trabalha, se defende. Reage.
Quando voltei, encontrei um mundo que não conhecia. Dia a dia penetro nele. Verifico que preciso primeiro me reconhecer outra vez, me identificar. Confesso, estou desesperançado. A cada momento indago se vale a pena o esforço para sobreviver, ou para renascer. E a resposta custa a chegar.
Vi uma foto de mulher sobre a penteadeira do quarto. O senhor é viúvo?
Não, sou casado.
Cadê sua mulher?
Ignácio de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum

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