sábado, 17 de agosto de 2019

Ninguém vai rir - 1

Sirva-me mais um copo de slivovice — pediu Klara, e não fui contra. Havíamos encontrado um pretexto que não tinha nada de extraordinário para abrir a garrafa, mas que se justificava: eu acabara de receber naquele dia uma quantia bem razoável como pagamento por um longo estudo que saíra numa revista de história da arte.
Meu estudo acabara sendo publicado, embora com um certo esforço. O que escrevera eram apenas críticas e polêmicas. Por isso a revista O Pensamento Plástico, com sua redação sombria e circunspecta, recusara esse texto que eu encaminhara finalmente a uma revista concorrente, certamente menos importante, mas cujos redatores eram mais jovens e menos sensatos.
O carteiro trouxera para mim, na faculdade, uma ordem de pagamento e uma carta; uma carta sem importância, que li por alto de manhã, impressionado com minha nova projeção. Mas de volta a casa, quando se aproximava a meia-noite e a garrafa estava quase no fim, apanhei a carta na minha mesa e a li para Klara, a título de gracejo:
Prezado camarada — e se posso me permitir usar este termo — prezado colega —, perdoe a um homem, com quem o senhor nunca falou, tomar a liberdade de escrever-lhe. Dirijo-me ao senhor para pedir-lhe que leia o artigo em anexo. Não o conheço pessoalmente mas o estimo, pois o senhor a meu ver é um homem cujas opiniões, raciocínios e conclusões sempre me pareceram confirmar de maneira surpreendente os resultados de minhas próprias pesquisas...”
Seguiam-se grandes elogios aos meus méritos e uma solicitação: ele me pedia o favor de redigir um parecer crítico à revista O Pensamento Plástico, que recusava há seis meses esse texto, negando-lhe qualquer valor. Tinham dito ao interessado que minha opinião seria decisiva, de maneira que eu era a única esperança do autor, a única luz naquelas teimosas trevas.
Klara e eu trocávamos toda espécie de brincadeiras sobre esse Sr. Zaturecky, cujo nome pomposo nos fascinava. Mas brincadeiras desprovidas, claro, de qualquer intenção maldosa, pois tantos elogios me enterneciam, sobretudo com uma garrafa de excelente slivovice ao alcance de minha mão. A tal ponto que nesses instantes inesquecíveis eu amava o mundo inteiro e, não podendo dar presentes ao mundo inteiro, eu os dava a Klara — se não presentes, pelo menos promessas.
Klara, com seus vinte anos, era uma moça de boa família. O que estou dizendo, de excelente família! Seu pai, ex-diretor de banco e, portanto, representante da grande burguesia, fora expulso de Praga por volta de 1950, e instalara-se na cidade de Celakovice, a uma distância considerável da capital. A filha, mal-aceita por parte da administração, trabalhava como costureira diante de uma máquina de costura no imenso ateliê de uma confecção de Praga. Eu estava sentado diante dela e encorajava seu interesse por mim, elogiando levianamente as vantagens do emprego que eu prometera lhe arranjar com a ajuda dos meus amigos. Afirmei-lhe que era inadmissível que uma moça tão bonita perdesse sua beleza em frente a uma máquina de costura e decidi que ela devia se tornar manequim.
Klara não me contradisse e passamos a noite em feliz harmonia.
Milan Kundera, in Risíveis Amores

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