sábado, 17 de agosto de 2019

Manoel entre pássaros

Há poucos meses, reli o Livro de Manuel, romance que o argentino Julio Cortázar publicou, em Paris, em 1973. É um livro anárquico, um mosaico de ideias, lembranças e fragmentos. Conta a história de um casal de argentinos que, exilado na França, recorta notícias de jornais sobre as ditaduras latino-americanas. Formam, assim, um álbum de recordações históricas (o próprio livro), para que seu filho Manuel, que está para nascer, conheça, no futuro, o mundo em que foi concebido. A coragem intelectual transformou Julio Cortázar em um dos mais importantes narradores do continente.
Seu estranho romance me volta à mente quando começo a ler Escritos em verbal de ave (Leya), o mais recente livro do poeta Manoel (este com “O”, e não “U”) de Barros. Trata-se, também, de um livro incomum, que ao ser aberto se transforma em um cartaz de oito faces. E isso (inferno das associações!) me faz lembrar, por insistência, de outro livro de Cortázar, Octaedro, coletânea de contos lançada um ano depois de O livro de Manuel.
Vivo assim, cercado de livros que enlaçam e abraçam outros livros, formando serpentes de relatos. É nesse cenário disperso que me surge o novo livro de Manoel de Barros. Ocorre-me ainda outra coincidência: na semana passada, comentei aqui um conto do japonês Kenzaburo Oe (1935) que se chama, justamente, “Os pássaros”. E agora, uma semana depois, dessa vez nas palavras de um poeta, as aves insistem em retornar. Só me resta acolhê-las.
O livro-cartaz é um conjunto de 32 poemas sem título, cada um deles com apenas três versos. Ou será um único poema de 96 versos? As maneiras de ler são infinitas: cada um lê não só como quer, mas como pode. Parto dos três primeiros versos: “Madrugada/ A voz estava aberta/ para os passarinhos”. Como um médium, Manoel incorpora os pássaros. Admite, até, que adota sua língua: “Fosse bem:/ que as minhas palavras/ gorgeassem!”. O poeta é um veículo que acolhe a voz alheia, a transforma e a transfere para novas dimensões. Assim Manoel faz com as aves. Não só as imita: ele as gagueja.
Essa gagueira de passarinho dá um tom musical aos poemas. Poemas escritos “em verbal de ave”? O poeta logo se transporta para o corpo de outros bichos. Escreve: “Vi a metade/ da manhã/ no olho de um sapo”. E ainda: “Vi uma lesma pregada/ na existência/ de uma pedra”. A pedra (imóvel e tensa) lhe parece, talvez, mais viva que a lesma (que rasteja e se alonga na vida). Resume Manoel, então, o objetivo de sua poesia: “Visões descobrem/ descaminhos/ para as palavras”.
Manoel, poeta dos descaminhos. Poeta que parte sempre da inocência (o ponto zero) das palavras. “Palavra abençoada/ pela inocência/ é ave.” Não dá importância ao peso dos dicionários, com seu enxame de significados. Prefere partir do dia do nascimento: escreve como uma parteira, que dá a palavra à luz. Transporta-se para cada um dos bichos de que trata. Isso é doloroso, mas inspirador: “Pedaço de mosca/ no chão/ meu abandono!”. Divide-se não para se perder, mas em busca do todo. Que, como sabemos (e ele também sabe), nunca se captura.
O poeta reconhece: “Abandono de um ser/ seria maior/ que o seu deserto?”. O que Manoel quer dizer com isso? Releio os versos, e outra vez, e mais uma, eles me espetam. Logo à frente, deparo com algo que se parece com um carinho ou um aconchego: “Significar/ reduz novos sonhos/ para as palavras”. A significação – que os dicionaristas tanto prezam e que sacia a fome dos verbetes – pode matar. Pelo menos: corre o risco de reduzir (prender) o que solto (como um pássaro) chegaria bem mais longe.
A beleza – um poeta sabe disto – não tem face. Não importa saber se ela existe ou não, mas se somos capazes de vê-la ou se a cegueira nos impede. “Quem não vê/ o êxtase do chão/ é cego”, Manoel nos adverte. E descreve, para nossa surpresa, a atitude ambígua que isso lhe inspira: “Tenho um gosto/ elevado/ para o chão”. Miudezas não o levam a rastejar, mas a voar. Também as coisas mais elevadas (por exemplo, os profetas ou os anjos) nascem desse rastejar. “Profetas nasciam/ de uma linguagem/ de rãs”, diz Manoel. Insiste que encaremos o chão, que nos debrucemos sobre ele. Que abandonemos a arrogância do olhar elevado, para fazer uma espécie de elevação para baixo. Algo que, se nos engrandece, é justamente porque nos achata. Vá se entender os poetas! E no entanto, sem eles, que deserto...
Confessa Manoel, por fim, o desejo de alçar voo, de ter asas, de ser um pássaro. Escreve: “Queria que um passarinho/ escolhesse minha voz/ para seus cantos”. É ainda mais específico: “Queria dar ao nada/ uma voz/ enlouquecida”. Suaves diabruras, que só um poeta que inveja as crianças pode se permitir. Ainda constata, com alegria, mas sem nenhum espanto: “Caracóis/ vegetam/ em minhas palavras”. Tomado por seus bichos, sendo ele mesmo um bicho solitário em um mundo de dentes vorazes, o poeta impõe sua voz de passarinho. Suja, rasteira, lamacenta; mas com sobrevoos sinuosos e livres, voz que se refresca na fonte farta das imagens.
Volto a pensar em Cortázar, que, meio século antes, também teve seu momento de Manoel. Também aceitou despregar-se, lançando-se na lama fresca das manhãs, espreitando as palavras ali onde, antes delas, alguma coisa (um latido, um mugido, um gorjeio) as anuncia. Manoel, senhor dos bichos, não para segui-los ou ordená-los, ou mesmo (devorador de carnes) para matá-los. Mas para perder-se em sua desorientação, dela arrancar sentidos, dela fazer poesia. Tão pequena e delicada como um pássaro.
Na contraface do poema-cartaz, esbarro com um poema mais longo: “Uma desbiografia”. Uma lição aos biógrafos, para que controlem sua arrogância e certezas bem documentadas, e aceitem o inevitável desconhecimento. “Bernardo morava de/ luxúria com as suas palavras”, ele começa. Assim: escrever como quem ama. Escrever das mesas de parto, onde a placenta ainda lateja. Sugere o poeta: “Bernardo sempre nos parecia que/ morava nos inícios do mundo”. Ali onde os poetas, sem nenhuma sinalização ou o agasalho de uma língua, sozinhos e frágeis como pássaros, dedicam-se a cantar.
José Castello, in Sábados inquietos

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