domingo, 25 de agosto de 2019

João e Maria

João era noivo de Maria.
Que você tem, Maria?
O noivado na sala de visitas. Sentavam-se no sofá de veludo verde, diante do retrato do pai. Em. moldura dourada o retrato olhava o tempo inteiro para João. Inútil mudarem o lugar do sofá. Retrato de morto é assim: gira os olhos de todos os lados.
Longo foi o noivado. No braço do sofá, a marca dos dedos de João; ali os esfregava com Dona Rosinha na sala. No espaldar, outra mancha. Ali Maria descansava a cabeça quando era beijada. Cada vez que se mexiam, as molas do sofá estalavam.
A mãe com a irmã de Maria na cozinha, uma costurando o enxoval e a outra pintando as unhas, ouviam rádio. As molas crepitavam na sala, Luísa punha o som mais alto. No quarto desabafava, com inveja:
Maria, não tem vergonha?
Maria não dizia nada.
João noivava três vezes por semana. Domingo cochilava depois do almoço no sofá.
Maria e a irmã ficavam à janela. Quem lavava a louça era Dona Rosinha.
Ele bateu uma noite na porta, Maria não atendeu. Costumava abri-la antes que João batesse. Bordando um lencinho, ouvia seus passos na calçada. Muita gente cruzava a rua, conhecia os passos de João. Aquela noite a irmã disse que Maria já vinha. João entendia o cochicho das duas no quarto. A outra voltou à sala, Maria com enxaqueca. Luísa, depois Dona Rosinha, sentadas diante de João. Bom rapaz, queixou-se Dona Rosinha, devia saber a obrigação.
Ele jurou que era inocente.
Por mim, Dona Rosinha, caso agora mesmo.
Maria estava deitada, o rosto na parede. Dona Rosinha foi acender a luz, a moça deu um grito. Ficaram no escuro, Luísa afagando-lhe os cabelos, a mãe esfregando-lhe com álcool os pés frios.
Durma, filhinha. Ele foi tirar os papéis.
Nunca mais o queria ver. Dona Rosinha ameaçou arrastá-la ao médico. Maria agitou-se na cama, pouco ligava. João não tinha feito mal. Se mentia, cega naquela hora.
Sábado esperou João na janela, de longe sorria. Ele entrou de cara feia:
Puxa, Maria. Me faz cada uma!
Bem pequena, sentadinha no colo. João pediu que casassem, o enxoval pronto — não podia aguentar o olho do retrato.
Ser noivo, Maria, é muito sofredor. Tem pena de mim?
Gosto demais, João.
Olhe para mim. Você é sonsa, Maria?
Eu, credo! — e o sinal-da-cruz.
Mordeu-lhe os lábios até o sangue, ela não abriu os olhos.
A noiva fez todas as desfeitas. João, que era pobre, gastava o que não podia. Deu-lhe caixa de bombons, não comeu nem um, bordando o lencinho, não mais no sofá, numa cadeira longe. Atirou-os pela janela. Ele achou alguns, guardou-os no bolso e, com saudade de Maria, apertava os papéis lambuzados, recheio derretido.
As flores que trazia, ela jogava no chão — ai, nojo de rosa. Os retratos, queimou.
Consumiu o véu de noiva, que tinha sido da mãe.
Em vez de o esperar, passeava à noite com Luísa. A mãe catava brasa para o ferro de roupa. Ele sentou-se no caixão da lenha.
Nada fiz para ela, Dona Rosinha. O que foi que eu fiz? Não quer dizer por que mudou. Porque está diferente, Maria? Não gosta de mim, não é?
Ela chora e me beija a mão.
Dona Rosinha enchia de brasas o ferro.
Não sei a raiva que tem de mim. Depois que me beija a mão, pega no lencinho, desfaz todos os pontos. Fura o sofá com a agulha. No meu lugar uma cruz de furinhos! Maria, você parece doida. Já reparou, Dona Rosinha, ela deu para roer unha? O pior é que não me olha.
Nunca mais ela me olhou...
Sem erguer o ferro do descanso, desculpou Dona Rosinha a filha que, de pequena, era esquisita. Não só com João. Com ela, que era a mãe. Fechava-se no quarto e não abria, por mais que batessem. A menina saiu, Dona Rosinha achou uma cadeira diante do espelho... Ergueu a tampa do ferro, soprou as brasas:
Não acha a Maria... estranha?
Não, senhora — acudi depressa, medo que fosse o fim.
Essa cadeira diante do espelho, minha filha? Maria não dizia nada. Aquela tarde a surpreendeu, aberta a porta, ali na frente do espelho... Olhava-se tão de perto, no lugar da boca o vidro embaçado. Quando a mãe entrou, Maria fez sinal. Não espantasse a outra moça. Que moça? Sua outra filha, Dona Rosinha. Que mora dentro do guarda-roupa. Bastava abrir a porta, ela fugia. Agora lá dentro. Então via a moça?
Dona Rosinha assustou-se, foi olhar. A filha pulou da cadeira: “Mãezinha boba!” De repente se não tinha olho de louca. Bem assim: “Olho de louca!”Remexendo nas gavetas, achou retrato de tia Matilde.
Tia Matilde... — João repetiu, a cabeça entre as mãos. — Quem era?
Muito parecida com a tia, explicou Dona Rosinha. O retrato podia ser o de Maria: olho de sonsa, perdido pelos cantos. Tia Matilde sofria de ataque e morreu no asilo… Dona Rosinha chorando soprava as brasas.
Queixava-se Maria de que os pés de avenca murchavam ao seu olhar. Foi o sol, Maria, a mãe insistiu que foi o sol. O canário suspendeu o canto, coberto de piolho vermelho. Ora, peste de canário velho. Diante do guarda-roupa, chegava o rosto na face gelada do espelho. Quem dera furar os olhos da outra com a agulha de tricô. Arregalando a pupila, morrer do próprio mau-olhado.
Dona Rosinha soprou o ferro frio. Não passara peça alguma de roupa: as brasas apagadas.
Já viu, João? Minha filha de cabelo branco!
Ele não respondeu. Pensava em Maria. “Meu Deus, que foi isso?” No braço unhadas ferozes de gato. Mas não havia gato na casa... “Eu que fiz”. “Por que, Maria?” "Para me castigar.
Olhei o pessegueiro de manhã...” Chão forrado de pêssego podre.
Esperava-o de olhos fechados na sala escura. Abria depressa a porta, com ele não entrasse raio de luz. “Está cega, Maria?”
Nua sob o vestido provocava João: “Não é homem, João. Se fosse me levava embora. Mamãe é louca. Me espia pelos buracos. Diz que sou tia Matilde. Eu me fecho no quarto. Sabe o que faz? Milhares de formiguinha preta. Por baixo da porta, sobem pelos pés da cama. Cubro a cabeça com o lençol. Elas me descobrem. O corpo cheio de formiguinha. Quer ver, João?”
Terça, quinta, sábado, vem noivar sozinho. No sofá, com as duas manchas: uma, da própria mão e, a outra, da cabeça de Maria. Ali na parede o velho de bigode branco, sem piscar, seguindo-o por todo canto.
A voz no quarto escuro: “De quem este convite, mãe? Quem vai casar? Já sei, a Matilde.
Tia Matilde com o João”.
Dona Rosinha serve-lhe um cafezinho. Depois abre as gavetas da cômoda, os dois admiram o enxoval e as bolas de naftalina, cada vez menores.
Dalton Trevisan, in Novelas nada exemplares

Nenhum comentário:

Postar um comentário