domingo, 25 de agosto de 2019

Deus é um bolso

Ah! Tanta gente quer saber se acredito em Deus! Mas eu não entendo a sua pergunta porque não sei o que elas querem dizer com essa palavra “acreditar”. Qualquer que fosse a resposta que lhes desse haveria um mal-entendido. As palavras são enganosas... Palavras são bolsos vazios. À medida em que a vida passa a gente vai pondo coisas dentro do bolso. O sentido do bolso é dado pelas coisas que pomos dentro dele. O bolso que tem o nome “Deus” fica então cheio das quinquilharias que nós colocamos dentro dele. Assim, quando falamos sobre Deus não falamos sobre Deus. Falamos sobre as coisas que guardamos dentro desse bolso. Muitas pessoas guardam mortes e castigos, outras guardam jardins... “Acreditar”, no sentido comum que as religiões dão a essa palavra, refere-se a entidades que ninguém jamais viu, tais como anjos, pecados, santos, milagres, castigos divinos, inferno, céu, purgatório... No meu bolso sagrado “acreditar” é palavra que não entra. Ele está cheio com palavras que têm a ver com amor, mesmo que o objeto do meu amor não exista. Eu amo o que não existe. Lembro-me das palavras de Valéry: “Que seria de nós sem o socorro das coisas que não existem?”. No meu bolso “Deus” eu guardo a beleza. Para mim, a beleza é sagrada porque, ao experimentá-la, eu me sinto possuído pelo Grande Mistério que nos cerca. Sinto-me como uma aranha que constrói a sua teia sobre o abismo. O abismo está à volta de nós, o abismo está dentro de nós. Os fios da minha teia, eu os tiro de dentro de mim, como a aranha. Teço a minha teia com poesia e música. De Deus só temos a suspeita. A beleza é a sombra de Deus no mundo. Sobre ele – ou ela – deve-se calar, embora as religiões sejam por demais tagarelas a seu respeito, havendo mesmo algumas que se acreditam possuidoras do monopólio das palavras certas, a que dão o nome de dogmas. “Pensar em Deus é desobedecer a Deus, porque Deus quis que não o conhecêssemos. Se ele quisesse que eu acreditasse nele, sem dúvida que viria falar comigo e entraria pela porta dentro dizendo-me ‘Aqui estou!’” (Caeiro). E de acordo também com Walt Whitman: “E à raça humana eu digo: – Não seja curiosa a respeito de Deus, pois eu sou curioso sobre todas as coisas e não sou curioso sobre Deus. Não há palavra capaz de dizer quanto eu me sinto em paz perante Deus e a morte. Escuto e vejo Deus em todos os objetos, embora de Deus mesmo eu não entenda nem um pouquinho...”. Não gosto de falar o nome “Deus” porque ele se presta a grandes confusões. Mas tenho um bolso com o nome “o Grande Mistério”. Mas não sei o que está dentro dele.
Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

Nenhum comentário:

Postar um comentário