domingo, 21 de julho de 2019

Winston sonhava – Capítulo 3


Winston sonhava com sua mãe.
Devia ter uns dez ou onze anos quando sua mãe desaparecera. E era alta, estatuesca, meio calada, de movimentos vagarosos e magnífico cabelo claro.
Do pai lembrava-se mais vagamente. Era moreno e magro, vestia sempre roupas escuras, bem postas (Winston lembrava-se vivamente das solas finas dos sapatos do pai), e usava óculos. Os dois deviam, evidentemente, ter sido tragados num dos grandes expurgos de 1950-60.
Naquele momento porém sua mãe estava sentada à frente dele, num lugar fundo, com a filhinha nos braços. Ele não se lembrava da irmã senão como um nenezinho fraco, sempre calado, de olhos grandes e vigilantes. Ambas o fitavam. Encontravam-se nalgum subterrâneo - no fundo de um poço, ou numa tumba muito profunda - mas era um lugar que, apesar de já ser muito mais baixo, submergia ainda e cada vez mais. Estavam no salão de um navio que naufragava, e olhavam para ele através da água que escurecia. Ainda havia ar no salão; elas podiam vê-lo e ele a elas, mas todo tempo as duas continuavam afundando, baixando nas águas verdes que dentro de alguns momentos as ocultariam para sempre. Ele se encontrava no claro, e com ar, enquanto elas eram absorvidas pela morte, e estavam no fundo por causa dele estar ali. Ele sabia disso, elas sabiam, e era visível que sabiam. Mas não havia censura nem na fisionomia nem no coração das duas, apenas a certeza de que deviam morrer para que ele continuasse vivo, e que aquilo era parte da ordem inevitável das coisas.
Não podia lembrar-se do quê sucedera, mas sabia no sonho que, dum modo ou de outro, a vida de sua mãe e de sua irmã tinham sido sacrificadas pela dele. Era um desses sonhos que, embora retenham o cenário onírico característico, são a continuação da vida intelectual do indivíduo, e no qual toma conhecimento de fatos e ideias que mesmo depois de acordar ainda parecem novos e valiosos. A coisa que agora impressionava Winston de repente era que a morte de sua mãe, quase trinta anos atrás, fora trágica e tristonha, de um modo que não seria mais possível. Ele percebia que a tragédia pertencia ao tempo antigo, a uma época em que havia ainda vida privada, amor e amizade, e em que os membros duma família amparavam uns aos outros sem indagar razões. A lembrança de sua mãe machucava-lhe o coração porque ela morrera amando-o, numa época em que ele era criança e egoísta demais para corresponder-lhe e porque, de certo modo, que ele não recordava, ela se sacrificara a uma concepção de lealdade particular e inalterável. Ele via que tais coisas não mais podiam acontecer. Hoje o que havia era medo, ódio, dor, porém nenhuma dignidade de emoção, nenhuma mágoa profunda ou complexa. Tudo isto ele pareceu ver nos grandes olhos de sua mãe e sua irmã, olhando-o através da água verde em que afundavam, centenas de metros abaixo de onde ele estava.
De repente encontrou-se num relvado fofo e curto, numa noite quente, em que os raios oblíquos do sol ainda douravam o chão. A paisagem que contemplava aparecia tanto em seus sonhos que nunca podia ter certeza de a ter visto ou não no mundo real. Desperto, chamava-a de Terra Dourada. Era um velho pasto estragado pelos coelhos, com uma picada que serpeava de um lado a outro, e pontilhado de cupins. Na sebe maltratada, do outro lado do campo, os ramos dos olmeiros balançavam de leve na brisa, e suas folhas palpitavam em densas massas, como cabelo de mulher. Por ali perto, embora invisível, havia um regato límpido e lento, em que nadavam as tainhas, nos espraiados à sombra dos chorões.
A moça do cabelo escuro vinha ao encontro dele, atravessando o campo. Com o que pareceu a Winston um único movimento, ela arrancou as roupas e atirou-as desdenhosamente para o lado. Tinha o corpo alvo e macio, mas não lhe despertou desejo; na verdade, mal o olhou. O que o possuía naquele instante era admiração pelo gesto com que atirara as roupas de lado. Com sua graça e displicência parecia aniquilar uma cultura inteira, todo um sistema de pensamento, como se o Grande Irmão, o Partido e a Polícia do Pensamento pudessem ser lançados ao nada por um gesto simples e esplêndido. Aquele também era um gesto que pertencia aos tempos antigos. E Winston despertou com a palavra “Shakespeare” nos lábios. A teletela estava soltando Um apito ensurdecedor, que continuou no mesmo tom durante uns trinta segundos.
Eram sete e quinze, hora de se levantarem os empregados de escritórios.
Winston arrancou o corpo da cama - nu, porque um membro do Partido Externo só recebia três mil cupons do racionamento de roupas por ano, e as duas peças de um pijama exigiam seiscentos - e apanhou uma camiseta suja e um par de cuecas que colocara numa cadeira próxima. A Educação Física começaria dentro de três minutos. No momento seguinte foi presa de violento acesso de tosse, que quase sempre o atacava pouco depois de levantar.
Esvaziava-lhe os pulmões de tal forma que só podia recomeçar a respirar deitando-se de costas e aspirando fundo uma porção de vezes. As veias tinham inchado com o esforço da tosse, e a variz ulcerada começou a coçar.
- Grupo de trinta a quarenta! - bradou uma aguda voz feminina. - Grupo de trinta a quarenta! Tomai vossos lugares, por favor. De trinta a quarenta!
Winston ficou em posição de sentido diante do aparelho, onde já aparecera a imagem de uma moça magricela porém musculosa, metida em uniforme e sapatos de ginástica.
- Dobrar e esticar os braços! - ordenou. - Acompanhai o meu ritmo. Um, dois, três, quatro! Um, dois, três, quatro! Vamos, camaradas, um pouco de vida nisso! Um, dois, três, quatro! Um, dois, três, quatro!...
A dor do acesso de tosse não afugentara inteiramente do espírito de Winston a impressão produzida pelo sonho, e de certo modo os movimentos rítmicos do exercício a reavivaram. Enquanto atirava mecanicamente os braços para frente e para trás, afivelando no rosto o ar de carrancudo prazer que se considerava recomendável durante a Educação Física, lutava para recordar-se do período obscuro da infância. Era extraordinariamente difícil.
Do acontecido antes de 1960, tudo desbotara. Não havia anais a que fazer referência, e portanto até o fio da vida pessoal perdia nitidez. Lembrava-se de momentâneos acontecimentos que com toda probabilidade não tinham acontecido, recordava-se dos pormenores de incidentes sem conseguir recapturar-lhes a atmosfera, e havia longos períodos em branco, aos quais nada podia atribuir.
Tudo então fora diferente. Tinham sido diferentes até os nomes de países, e suas formas no mapa. A Pista N.º 1 não tinha esse nome naquela época: chamava-se Inglaterra, ou Grã-Bretanha, embora Londres - disso tinha certeza quase absoluta - sempre tivesse sido Londres.
Winston não podia lembrar definitivamente uma época em que o país não estivesse em guerra, mas era evidente um intervalo de paz bastante longo durante a sua infância, porque uma das suas mais longínquas recordações era de um bombardeio aéreo que parecera a todos surpreender. Fora talvez quando a bomba atômica caíra em Colchester. Não se lembrava do bombardeio em si, mas lembrava-se do pai a segurar-lhe a mão com força, enquanto corriam para um lugar nas profundezas da terra, dando voltas e voltas numa escada espiral que fazia ruído sob seus pés e que por fim lhe cansou tanto as pernas que ele começou a choramingar e pararam para descansar. Sua mãe, com modos lentos e sonhadores, seguia-os a grande distância. Levava nos braços a menina - ou talvez fossem apenas cobertores: Winston não tinha certeza da garota já ser nascida. Por fim tinham ido dar num lugar atulhado e barulhento, que verificou ser uma estação do trem subterrâneo.
Havia gente sentada no chão de lajedo, e outros, muito apertadinhos, sentavam-se em catres metálicos, arrumados como beliches. Winston, mãe e pai, encontraram um lugar, perto dum velho e duma velha sentados num catre. O velho vestia um terno escuro, de boa qualidade e boné de pano preto na cabeça toda branca. Tinha o rosto escarlate, e os olhos azuis cheios de lágrimas. Fedia a gim. Parecia porejá-lo pela pele, em vez de suor, e podia-se imaginar fossem puro álcool as lágrimas que lhe cresciam nos olhos.
Entretanto, apesar de ligeiramente bêbedo, sofria uma dor genuína e insuportável. Com sua percepção infantil, Winston viu que algo terrível, que não tinha perdão nem remédio, acabara de suceder. Pareceu-lhe também saber do que se tratava. Morrera no bombardeio alguém que o velho amava; uma netinha talvez. A curtos intervalos, o velho repetia:
- Não deviamo tê confiança neles. Eu te disse, Mãe, não disse? Foi nisso que deu tê confiança neles. Foi o que eu sempre disse. Não deviamo tê confiança nos sacana.
Mas quais sacanas não mereciam confiança, Winston já não se lembrava.
Desde mais ou menos aquela época, a guerra fora literalmente contínua, embora, a rigor, não fosse sempre a mesma guerra.
Durante vários meses, durante sua meninice, houvera confusas lutas de rua na própria Londres, e de algumas ele se recordava vivamente. Mas seguir a história de todo o período, dizer quem lutava, contra quem, em determinado momento, seria absolutamente impossível, já que nenhum registro escrito, nem palavra oral, jamais faziam menção de outro alinhamento de forças, diferente do atual. Naquele momento, por exemplo, em 1984 (se é que era 1984), a Oceania estava em guerra com a Eurásia e era aliada da Lestásia. Em nenhuma manifestação pública ou particular se admitia jamais que as três potências se tivessem agrupado diferentemente. Na verdade, como Winston se recordava muito bem, fazia apenas quatro anos a Oceania estivera em guerra com a Lestásia e em aliança com a Eurásia.
Isso, porém, não passava de um naco de conhecimento furtivo, que ele possuía porque a sua memória não era satisfatoriamente controlada.
Oficialmente, a mudança de aliados jamais tivera lugar. A Oceania estava em guerra com a Eurásia: portanto, a Oceania sempre estivera em guerra com a Eurásia. O inimigo do momento representava sempre o mal absoluto, daí decorrendo a impossibilidade de qualquer acordo passado ou futuro com ele.
O espantoso, refletiu pela décima milésima vez, ao forçar os ombros dolorosamente para trás (mãos nas cadeiras, fazia girar o corpo pela cintura, exercício que se acreditava fazer bem aos músculos dorsais) - o espantoso é que pode mesmo ser verdade. Se o Partido tem o poder de agarrar o passado e dizer que este ou aquele acontecimento nunca se verificou - não é mais aterrorizante do que a simples tortura e a morte? O Partido dizia que a Oceania jamais fora aliada da Eurásia. Ele, Winston Smith, sabia que a Oceania fora aliada da Eurásia não havia senão quatro anos. Onde, porém, existia esse conhecimento? Apenas em sua consciência, o que em todo caso devia ser logo aniquilada. E se todos os outros aceitassem a mentira imposta pelo Partido - se todos os anais dissessem a mesma coisa - então a mentira se transformava em história, em verdade. “Quem controla o passado,” dizia o lema do Partido, “controla o futuro: quem controla o presente controla o passado.” E no entanto o passado, conquanto de natureza alterável, nunca fora alterado. O que agora era verdade era verdade do sempre ao sempre. Era bem simples. Bastava apenas uma série infinda de vitórias sobre a memória. “Controle da realidade,” chamava-se. Ou, em Novilíngua, “duplipensar.”
- Descansar! - latiu a instrutora, um pouco mais benévola.
Winston deixou cair os braços e lentamente tornou a encher os pulmões de ar. Seu espírito mergulhou no mundo labiríntico do duplipensar. Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da democracia e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra “duplipensar” era necessário usar o duplipensar.
Nesse momento a instrutora chamou-os de nova à ginástica.
- Vamos ver quem de nós é capaz de tocar a ponta dos pés! - disse, com entusiasmo - Sem dobrar os joelhos, camaradas, só a cintura. Um-dois! Um-dois!
Winston odiava esse exercício, que lhe produzia dores nas pernas, desde os tornozelos até as nádegas e não raro lhe provocava acessos de tosse. O ar semi-agradável sumiu de suas meditações. O passado, refletiu, não apenas fora alterado, fora efetivamente destruído. Por que, como estabelecer até mesmo o fato mais patente, se não havia dele registro, além do da memória? Tentou recordar-se do ano em que ouvira pela primeira vez falar do Grande Irmão. Achou que deveria ter sido na década de 1960 a 70, mas era impossível ter certeza.
Nas histórias do Partido, o Grande Irmão naturalmente figurava como chefe e guardião da Revolução, desde o princípio. Suas elucubrações tinham aos poucos recuado no tempo até atingir o mundo fabuloso de 1930 a 50, época em que os capitalistas, com estranhos chapéus cilíndricos, ainda rodavam pelas ruas de Londres em grandes e brilhantes automóveis ou carruagens com janelas de vidro. Não era possível saber até onde essa lenda era verdade e até onde era invenção.
Winston não podia lembrar-se nem da data em que o Partido viera à luz. Não acreditava ter ouvido a palavra Ingsoc antes de 1960, mas era provável que na sua forma antiga, em Antilíngua - “Socialismo inglês” - fosse corrente antes daquele ano. Tudo se fundia na névoa. As vezes, porém, podia colocar o dedo numa mentira definida. Não era verdade, por exemplo, como afirmavam os livros de história do Partido, que o Partido tivesse inventado o aeroplano.
Lembrava-se de aviões desde a mais tenra idade. Mas não podia provar nada.
Nunca havia prova. Apenas uma vez, em toda sua vida, tinha tido em mãos prova documental inconfundível da falsificação de um fato histórico. E naquela ocasião...
- Smith! - gritou da teletela a voz da megera. - Smith W! Tu, tu mesmo! Inclina-te mais, por favor. Podes fazer mais que isso. Não, não estás te esforçando. Mais baixo! Assim está melhor, camarada. Agora, todo mundo, descansar! Olhai para mim.
Um calor quente e súbito dominou todo o corpo de Winston. O rosto continuou inescrutável. Jamais revelar desânimo! Jamais revelar ressentimento! Um simples olhar podia denunciá-lo. Ficou olhando a instrutora levantar os braços acima da cabeça e - não se podia dizer com graça mas com notável decisão e eficiência - inclinar-se e meter a falangeta sob os artelhos.
- Pronto, camaradas! É isto que vos quero ver fazer. Olhai de novo. Estou com trinta e nove anos e tive quatro filhos. Olhai. - Inclinou-se de novo - Vêem, que não dobro os joelhos! Todos podeis fazer, se quiserdes, - acrescentou, enquanto se levantava. - Com menos de quarenta e cinco, qualquer um pode tocar a ponta dos pés. Não temos todos o privilégio de lutar nas linhas da frente, mas pelo menos podemos conservar a linha e a saúde. Lembrai-vos dos rapazes da frente de Malabar! E dos marinheiros das Fortalezas Flutuantes! Pensai no que eles têm de suportar. Vamos tentar de novo. Agora está melhor, camarada, muito melhor! - ajuntou, animando-o, quando Winston, num tranco violento, conseguiu tocar os pés sem dobrar os joelhos, pela primeira vez em vários anos.
George Orwell, in 1984

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