sexta-feira, 19 de julho de 2019

O sobrinho sensibilizado visita os extremados tios, levando fichas extras para água. Abre-se o diálogo das grandezas do Brasil

O tio anda com uma cara. O que é que há?
Preocupações de velho.
Está velho, tio? Não parece.
A cabeça dele está ficando branqueada, é isso.
Continua com as velhas ideias, tio?
Você viu o que ele arranjou? Um furo na mão!
Furo na mão? Como?
E ele conta?
Não será contagioso? Foi ao Posto?
Ele diz que foi. Não acredito. O Posto teria dado uma receita. Ou isolado.
Ah, ele tem medo do Isolamento?
Não diz, mas tem. Uma vez me contou que o Isolamento é o fim. Quem vai para lá não volta mais.
Como não volta?
Ele garante que os isolados somem do mundo.
Quem sabe, tio, lá tem um forno crematório? Gás, forno, e um montinho de cinzas do outro lado, espalhadas pelo vento. Pode ser, tio, que essa poeira escura que enche nossas casas, todos os dias, seja cinza, hein?
Não brinca, menino! Seu tio já anda preocupado. Não sei o que vai ser. Cada dia mais quieto. Agora deu de não querer trabalhar. Disse que é inútil, o emprego dele é improdutivo.
É improdutivo? Quem é que está preocupado com isso, tio? Sabe quantos têm à espera do teu lugar? Sabe?
Ele deve saber. Está vendo as ruas cheias. Cada dia mais cheias. Será que o Novo Exército não vai fazer nada? Está ficando impossível. Só hoje passaram por aqui dez pessoas pedindo comida e água.
Não podem fazer isso. Eles têm ficha para circular por aqui? – E eu sei? – São mal-encarados, pobres coitados! Tenho nojo dos despelancados. Coisa mais horrível. Por que não isolam esses?
Não dá para fazer tudo, tia. Estamos tentando. Agora que me promoveram, vão me nomear para o controle das regiões ao redor da Gigantesca São Paulo. Vai ser trabalho pra burro.
Mas ganha mais?
Um pouco. Vou ter de montar um esquema a fim de manter os retirantes fora dos limites da cidade.
Devolve pro lugar de onde vieram.
Vieram dos territórios estrangeiros.
Faz um acordo.
Acordo. Quem quer saber? Um dia destes, vou levar o tio comigo para visitar os Acampamentos.
Você podia arranjar uma autorização pro tio visitar o pai dele.
Visitar o pai? Vovô não está morto?
Não, foi recolhido ao Patrocínio Silencioso. E seu tio não conseguiu visitá-lo uma só vez.
O Patrocínio é longe. Tem de passar quatro Distritos. É uma burocracia infernal conseguir fichas de circulação através desses Distritos. Cada administrador quer dinheiro, ou privilégio.
Você é capitão do Novo Exército.
Pois é, mas quem tem força é de general para cima.
Já foi bom este país. Está muito complicado. Qualquer dia, nem posso ir a minha igreja.
Continua a mesma, tia. Acreditando que Deus vai resolver? Eu me lembro, era garotinho, vinha brincar no seu quintal. Todos os dias, na hora de lavar a mão, você vinha: vai ser padre, filho. Ou entra para o Novo Exército. Depois parou de falar nos padres, meteu na minha cabeça que era o Novo Exército mesmo. Minha mãe queria que eu fosse para o Banco do Brasil. Ou para a Carteira de Habilitação.
Era teu pai que falava na Carteira de Habilitação.
Me lembro mal dele.
Dizia que na Carteira de Habilitação você faria carreira, teria futuro, poderia garantir casa para a família. Além disso, se subisse, o que era o sonho dele, poderia dirigir uma seção qualquer. Como a de compras. Era obsessão dele. Não entendo por quê. “Quem faz as compras dá as cartas, está com tudo nas mãos.” Por que ele dizia isso?
Não conheci direito, mas o pai devia ser esperto.
Chefe da seção de compras? Que bobagem.
Pois é, tia. E quase virei chefe da seção de compras. Minha sorte foi não ter passado no exame médico. Descobriram o meu intestino destruído, fui reprovado.
Ainda bem que o Novo Exército foi complacente, te aceitou.
Num batalhão especial...
Nem todo mundo é de marchar, fazer ordem unida, sair atirando.
A maioria dos Militecnos tem um problema. Estômago, pulmão, coluna, intestino. A gente foi a geração que nasceu depois da explosão do reator, tiveram de compensar a gente de algum modo. Acabei capitão.
Eram tão bonitos os moços em seus uniformes, quando desfilavam pela cidade, quando patrulhavam. Teu tio foi bobo. Eu dizia para ele: acaba com essa faculdade, vai para o Novo Exército. Ele odiava os soldados que patrulhavam.
Era, tio?
Olha a cara dele! Tem ódio quando falo nisso.
Vai ver o tio não gosta de mim.
Como pode não gostar? Você é como um filho.
Tem pais que odeiam os filhos.
Não é o caso do seu tio. Ele tem suas esquisitices, mas é boa pessoa.
Boa? Será, tio? Por que não responde?
Ele te quer bem.
Não sei, não. Tenho visto pessoas como ele, perigosas. O tio não se conforma com a situação.
Faz tempo que ele não discute política.
Gosta ou não do Esquema, tio?
Não é hora de discutir essas coisas, filho. Você veio almoçar com a gente. Hoje é domingo, vamos descansar, ver televisão, passear.
Passear? Ora, tia, quem é que passeia com um calor desses? Ninguém mais. O que há?
É, faz tempo que não saio. Vou abrir a garrafa que você trouxe.
Como é, tio?
Deixa o tio sossegado, ele ficou chocado com o furo na mão.
Olha a cara dele. Tem qualquer coisa estranha aí.
Não tem, não. Sempre foi assim, um ar irônico. A cara fechada.
Gosta ou não do Esquema, tio?
Não.
Viu, tia? Viu como eu estava com a razão?
Está brincando comigo. Não está, Souza? Diz que está.
Não gosto do Esquema. E não estou brincando.
Souza, você está louco?
Não gosto do Esquema, não posso gostar. Tudo que está aí foi por causa dele.
Tudo o que está aí?
Tudo. O país despedaçado, os brasileiros expulsos de suas terras, as árvores esgotadas, o desertão lá em cima.
Belíssimo deserto. Nona maravilha.
Maravilha. E os rios?
Agora vai pôr a culpa no Esquema dos rios terem secado? Do calor? Seja razoável, tio. O mundo mudou. O senhor sabe, é professor de História. A culpa foi dos governos que fizeram experiências nucleares, transformaram a atmosfera.
Repete a propaganda oficial, repete.
Foram coisas que aprendi no Curso Infinito da Guerra, tio. Pena que seja um curso limitado a oficiais. Seria bom para todo o povo saber.
Me responde? Onde está o país?
Aqui, ali, tudo em volta.
Deste tamanhinho? Pensa um pouco, raciocina. Quando eu era jovem, o país tinha oito milhões e meio de quilômetros quadrados. Sabe quanto tem agora?
De cabeça, não.
Consulta. E, quando souber a resposta, vem me contar. Está pouco maior que a palma da minha mão.
Tio, os conceitos de nação mudaram. O que vale agora é o internacionalismo. A multiplicidade. Aqui é um pedacinho. Você soma com os pedacinhos que temos por aí afora. Reservas no Uruguai, na Bolívia, pedação do Chile, na Venezuela. Cada savana na África, quero ser transferido para a África, triplica o soldo e a gente tem casa, comida, economiza.
Pois é, entregamos o nosso e fomos colonizar outros territórios.
Não é colonização, tio, é diferente. São reservas multi-internacionais. O mundo se globaliza.
Talvez eu seja velho, com ideias antigas. Mas queria meu país inteiro, não um mundo de países dentro do meu. Eu te contei daquela viagem. Quis chegar a Manaus e nunca cheguei. Não podia ir lá, fui rodeando, tive de voltar. Foi mais difícil atravessar Rondônia do que conseguir permissão para cruzar a Bolívia.
Sua visão é limitada, tio. O senhor pensa em termos individuais, restringe-se a um regionalismo superado. Raciocine em termos mais amplos. Nossa economia, por exemplo, nunca esteve tão forte.
Forte? Ninguém tem dinheiro. O país endividado. Não há terras para plantio. Tudo custa os olhos da cara, estamos importando tudo.
Importamos pouca coisa.
Pouquíssima. Sal, açúcar, minério de ferro, xisto, feijão, eletricidade, papel, plásticos. Quer a lista inteira?
Não são importações, são acordos feitos quando das negociações com as terras.
Como é que você não enxerga? Importamos de nós mesmos. Mandamos buscar ali em cima, onde antes era o norte do Mato Grosso, o Maranhão, o Pará.
Lembre-se de que as concessões não são eternas. Têm um prazo.
Eu vi. O ano passado esgotou-se o prazo da concessão para a Bélgica. E eles devolveram os trechos que mantinham em Goiás? Não, o Esquema comprou. Comprou uma coisa que seria dele, de graça, este ano.
Foi diferente. Tinha melhorias, projetos industriais, edifícios, plantações, laboratórios.
Ruínas, tudo ruínas.
Como sabe?
Vazou. A informação vazou, meu filho. A gente acaba sabendo. Quem é que lucrou com o retorno da concessão belga? Falam, olhe lá, falam que foi o Círculo dos Ministros Embriagados. Se você repetir, desminto. Mas é o que corre.
O Círculo? Como podem dar tanta importância ao Círculo? Estão todos sob controle. Vivem em prisão domiciliar, supervigiados. Eles não têm mais poderes.
Quem garante que eles estão lá? Nunca mais ninguém viu um só ministro. Não circulam. Dizem que eles estão infiltrados no Esquema.
Cuidado, tio, é perigoso isso que o senhor está dizendo! O atual Esquema liquidou completamente com a Era da Grande Locupletação. Foram todos presos, cassados, banidos, eliminados, mortos.
O Círculo está lá, vivo.
O Círculo é um mito.
O Esquema permite a existência do Círculo. Qualquer hora, ele se organiza e retoma o poder. O Esquema não está dominando a situação.
Domina, e domina fácil. Tudo está planejado.
Planejado? Ele não contém as migrações. A saúde pública faliu. Vejo, toda hora, na rua, os homens caindo aos pedaços. Não há mais água. Se você não trouxesse as fichas, eu e sua tia íamos morrer de sede.
Não acredito que o senhor tenha sido professor universitário, com a mente tão limitada. Vocês sempre se bateram pela estatização geral. Pois chegamos à estatização. O governo domina tudo, em todos os setores.
Você se esquece que não é o governo que detém a economia, mas uns poucos que estão nas boas graças do governo. E o povão continua igual, ou pior do que sempre foi.
Não vem com essa conversa de povo. Que o senhor nunca ligou para ele. Nem sabe como é. O senhor e essa gente toda que vive gritando que defende o povo.
Acho que, hoje em dia, sobrou a tentativa de defesa do que resta como país. Reconstruir o país, se ainda for possível, e então pensar no povo dentro dele.
Na hora de arranjar fichas por fora, o Esquema é bom, hein, tio?
Por que vocês discutem? Cada vez que ele vem nos visitar, sai uma discussão nesta casa, Souza. Por quê? Não podemos fazer como todas as famílias? Ficar alegres, conversar coisas boas? Há tanto assunto bonito.
Vamos conversar bonito, tio. Também acho melhor.
Você é inteligente, meu filho. Não entendo como pode permanecer nesse cargo, como pode estar cego diante da realidade.
Vivo a realidade, tio. Esta sempre foi a minha realidade, nunca convivi com outra. Quando nasci, os Abertos Oitenta tinham terminado. Não figuram nem nos livros de História. É ou não é? A eles, só pequenas referências, sem muitas explicações. Então como posso estar cego?
Viver dentro de uma realidade é um fato. Aceitar, achar que tal realidade é boa, é outra história. Nunca pensou que a vida pode ser diferente? Você não imagina que as coisas possam ser de outra maneira?
Se não vivermos organizados, morremos. Estamos na linha justa, sob rígido controle. Não tem outro jeito.
Mas havia, não tivessem feito o que fizeram.
Fizeram, é irremediável.
Será? Talvez ainda não!
Ignácio de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum

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