O
rapaz vinha contente pelo aguaceiro - plact, ploct, ploct - na
semi-embriaguez em que o tinham deixado umas cachaças tomadas para
cortar: um mulatinho bacano e desempenado, naquela idade em que só
se olha para a frente. Levantara as calças até os joelhos e agora
deixava a chuva bater-lhe livremente no rosto, tomado de euforia.
Nunca tinha visto tanta água. Ficara um tempão preso na obra, tudo
alagado em torno, mas a cachaça correra de mão em mão - ele pouco
habituado - e de repente, com a cabeça em fogo, resolvera enfrentar
o temporal - poxa! - senão ia perder a vez da Ritinha.
Ritinha
era uma jovem prostituta do morro, menina de 14 anos que se
achamegara por ele. Ela o esperava sempre embaixo da escadaria que
cortava a encosta, para evitar confusão com os malandros que a
requestavam. “Deixa eles comigo”, dizia-lhe o rapaz cheio de
entono, gingando o corpo como quem vai se espalhar. Mas ela sabia que
seu namorado ainda não dava pé para enfrentar a turma da pesada, e
por isso arrumara aquele cantinho discreto, onde podiam se amar à
vontade.
Ele
a viu mesmo de longe, abrigada sob a pedra da encosta, e correu para
ela - ploct, ploct, ploct, ploct - o mais depressa que podia, a mente
cheia de desejo do seu amor fácil e sem compromisso. Teve apenas o
cuidado de rodear de longe o grande bueiro aberto na rua, para onde
as águas lamacentas eram tragadas em rápida e perigosa sucção:
-
Pensei que você não viesse mais... - queixou-se ela, abraçando-o
todo contra o coração.
-
Ah! roxinha... Não foi mole não! Se o papai aqui não é muito
safo, você hoje ficava sem a sua marmita...
E
veio o amor violento sob a chuva, um a querer sugar o outro, ela no
seu abandono de prostituta-menina, ele no ardor de seus verdes anos,
acrescido da embriaguez do álcool. E a tromba-d'água caía em
torrente sobre seus jovens corpos se amando na lama, lavando-os das
impurezas da vida no morro. E depois veio a paz.
-Vou
te levar pro teu barraco - disse-lhe ele, agradecido.
-
Que barraco? Não tem mais barraco nenhum não...
-
Como é que não tem mais barraco?
Ela
deu de ombros:
-
A pedra rolou ontem de madrugada e acabou com tudo.
O
rapaz ergueu o corpo a meio, para olhá-la melhor. Só então notou
grandes rnanchas de sangue por baixo da lama que a cobria.
-
Quer dizer que você não tem mais onde morar?
Ela
levantou-se, apoiando-se nele:
-
Tenho. Só agora é que eu tenho mesmo onde morar. Você chama morar
àquele barraco imundo que eu tinha, onde eu vendia meu corpo por um
dólar de maconha?
Depois,
desprendendo-se dele, deu alguns passos em direção à rua cheia
onde a água turbilhonava:
-
Eu só voltei para não faltar ao nosso encontro…
E
caminhando rapidamente para o sumidouro, gritou-lhe:
-
Desde ontem eu moro aqui.
E
tapando delicadamente as narinas com os dedos sujos de sangue e
barro, deu um gracioso saltinho para dentro do bueiro e desapareceu.
Vinicius
de Moraes, in Prosa
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