domingo, 3 de março de 2019

A gorjeta é livre

Confesso que sou um constrangido diante do garçom, qualquer garçom. Se for garção, então, é pior. Garçom é uma coisa pouco natural. Uma coisa antiga. Aquele homem ali, de gravatinha, nos servindo. Às vezes com idade bastante para ser nosso pai... É embaraçoso, para ele e para nós. A gorjeta voluntária é uma espécie de taxa-vexame que você paga ao garçom por ainda existir. Um suborno para ele esquecer tudo e você aplacar sua consciência. É como dizer “eu sei, eu mesmo devia me levantar e ir à cozinha buscar meu prato como mamãe me ensinou, sou uma besta, o mundo é injusto, toma aí para uma cervejinha”. Quanto mais servil o garçom, mais você se constrange e maior a gorjeta. É o remorso. Ou a consciência social, que é a mesma coisa.
A gorjeta obrigatória desobriga as duas partes, o garçom de babar no seu pescoço e você de ter remorso. Mas também leva a exageros, como a desatenção completa do garçom pelo mundo em geral e pela sua mesa em particular. Quer dizer, somos pela igualdade universal, o fim do servilismo e a fraternidade entre os homens, mas olha o serviço, pô! E quem nunca teve que passar pelo vexame de atrair a atenção de um garçom que insiste em não olhar para cá? É dos piores momentos da humanidade.
Você levanta o braço para um aceno, o garçom não olha e você tem que improvisar: passa a mão no cabelo, coça a nuca, finge que está espantando uma mosca ou que viu um conhecido lá no fundo. “Oi, tudo certinho?” Tenta outra vez, o garçom continua não olhando, e é outro conhecido que você descobre no restaurante. Até que:
Qual é?
Qual é o que, cavalheiro?
É a terceira vez que você abana para a minha mulher e ela jura que nunca viu você na vida.
Sua mulher? Não, não, por amor de Deus, eu estava espantando uma mosca.
Tou sabendo. Que não aconteça outra vez.
Pode deixar. E me faça um favor. Na volta para a sua mesa, diga ao garçom que preciso falar com ele. É urgente. Espero ele aqui mesmo, mais ou menos a esta hora, com o braço levantado que é para ele me identificar. Diz para ele trazer a nota. A nota. Ele compreenderá.
Pior é quando você chama e ele não ouve. Você tenta o tom jovial — “ó comandante” — depois o falso íntimo — “meu chapinha!” — depois o formal com alguma autoridade — “quer fazer o favor?” — e finalmente a linguagem internacional do “psiu!”. Se tudo falhar, atira um garfo na cabeça dele. Mas tem que pagar a gorjeta, está incluída.
E o maître? O maître é o terror. O maître já foi garçom, já passou por tudo que um garçom passa, e hoje é um ressentido no poder. Trata os garçons como uma subespécie e você como um garçom. Não sei se sou só eu, mas sempre tenho a impressão de que o maître desaprova o meu pedido, o vinho que escolhi, o jeito que pego na faca e o tom dos meus sapatos. E também não está muito entusiasmado com a minha existência.
Mesa para quantos?
Do-dois... Se o senhor não se importar. Mas se preferir, eu vou embora. E desculpe qualquer coisa!
Na primeira vez em que pedi ostras num restaurante em Paris, conta ele só para dizer que já esteve em Paris, encarei o maître pronto para exorcizar de uma vez todos os meus terrores. Se conseguisse enfrentar um maître de Montparnasse, na língua dele (cada vez que eu falo francês, Racine morre mais um pouco), estaria salvo. Olhei o maître nos olhos e disse, a voz firme como a saúde do Pompidou, que estava à morte na ocasião:
Des huîtres.
Monsieur?
Des huîtres — repeti, já pensando em abandonar a ideia, a mesa e a cidade.
Sim, monsieur, mas de qualidade? Que número?
Ele me mostrou o cardápio. Havia 17 categorias diferentes de ostras, e cada categoria tinha vários números, correspondentes ao tamanho.
A claire número 3, evidentemente — disse eu, dando a entender que um bom maître veria na minha cara que eu era um homem de claire número 3.
Mais tarde, consumidas as ostras, ele trouxe uma tigela de prata com água morna e uma rodela de limão. E ficou por perto, na certa antecipando que eu beberia a água em vez de lavar os dedos. Mas não lhe dei esse prazer.
O diabo é que depois disso, em qualquer restaurante do mundo em que entro, noto um brilho de divertido reconhecimento nos olhos do maître. Ah, esse é o tal das ostras em Paris... Uma alucinação, claro. É o terror.
Sempre dou gorjeta para o garçom, apesar do constrangimento. Mas para o maître nunca. Conheço os meus inimigos.
Luís Fernando Veríssimo, in A mesa voadora

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