domingo, 3 de março de 2019

Jorge Amado

Arte: Kaleb de Carvalho

Peri, Iracema, a escrava Isaura, o alemão Lenz, o Timbira — como essa gente era complicada e falava difícil! Na floresta bruta ou pelas vizinhanças da senzala, adotavam sintaxe encrencadíssima, ideias e sentimentos que os gringos manifestam nos livros. Todos os heróis, que deliciaram, ou chatearam, nossos pais, eram falsos, contrafeitos, mal traduzidos do francês e pessimamente arrumados numa terra que ninguém estudava convenientemente. Os escritores nacionais viviam no mundo da lua, isto é, viviam aqui na cidade, cavando qualquer coisa na política, na burocracia ou na imprensa, mendigando pistolões e artigos. Ainda há poucos anos era comum ver alguns gesticulando na porta do Garnier, vermelhos, suados, embromadores e famintos de elogios. Esses homens criavam um mundo absurdo, os seus personagens mexiam-se em regiões desconhecidas, porque às vezes os autores se envergonhavam de localizá-los em Santa Rita de Passa Quatro ou Jacaré dos Homens. Ou penetravam o sertão brasileiro, mas um sertão irreal, caluniado, acanalhado. Felizmente Peri, Iracema e os alemães do Sr. Graça Aranha estão mortos. Temos é uma quantidade razoável de sujeitos bem-intencionados que se propuseram examinar cuidadosamente o que se passa nas plantações de cacau, nos engenhos, nas repartições, nas casas de cômodos, nos bordéis, nas favelas, nas cadeias, nos colégios, homens que abandonaram os salões e as florestas de pano pintado, foram ver como se comportavam os trabalhadores do eito, os presos, os retirantes, os vagabundos, os criminosos, as prostitutas, os funcionários públicos e as crianças das escolas. Um desses observadores, e dos melhores, é incontestavelmente Jorge Amado. A sua galeria de tipos, já bem vasta, cada vez mais se enriquece com figuras que ele vai arrancar à vida no Recôncavo e no interior da Bahia. São criaturas admiráveis, definitivamente incorporadas ao nosso minguado patrimônio literário, pretos e mulatos habitantes dos morros e dos saveiros, pequena humanidade que se move numa luz muito forte, Guma, Antonio Balduíno, mestre Manuel, Lívia, Maria Clara, crianças perdidas e malandros, mendigos e contrabandistas, ladrões e macumbeiros, a professora cheia de sonhos indefinidos, a moça de azul que passa a distância, imprecisa e nebulosa, todos mais ou menos resignados, mais ou menos fatalistas, agitando-se às vezes em revoltas bruscas, mas confiantes de ordinário, à espera de um milagre que endireite as coisas. Nada de comum entre essas criaturas e os heróis do romance antigo, convencionais e arbitrários, híbridos de selvagem e cristão, vazios e enfeitados, absolutamente bons ou absolutamente maus. Os mestiços de Jorge Amado não são bons nem maus, ou antes são as duas coisas ao mesmo tempo — e por isso confundem-se com os brasileiros de carne e osso, que são assim mesmo, bebem e jogam, vão à sessão espírita, acreditam em sonhos, conversam putaria e desejam que falem deles nas folhas. É verdade que os nossos amigos do morro do Capa Negro, do cais, da ladeira do Pelourinho ainda não chegaram ao espiritismo e à literatura das revistas, mas aproximam-se disso: amam as macumbas e desejam ser adulados por poetas bisonhos, em folhetos de capa vistosa, que se vendem por um níquel nas feiras. A miséria aqui não nos aparece de punhos cerrados e rangendo dentes: encolhe-se com doçura, espera que as coisas melhorem e acabem por arranjar-se, confia no feitiço, na sorte, na proteção de divindades bárbaras e terríveis. Um sopro de poesia varre todas as imundices, perfuma esse monturo social. O próprio vício tem aparência amável. Uma prostituta sacia o desejo do vagabundo sem dinheiro, a mulata Esmeralda engana o amante inocentemente, alegremente, livre de pecados, um brilho de triunfo nos olhos verdes. Muitos crimes circulam nas páginas do escritor baiano, mas circulam discretamente, sem a carranca trágica do dramalhão, sem o adjetivo campanudo que deforma os atos simples e naturais. Furtos, roubos, contrabandos, navalhas e punhais, brigas em quantidade. Para que dar excessivo relevo a fatos ordinários? A gente lastima. É o diabo. Mas que se há de fazer? Estava escrito. A embarcação bateu na coroa e afundou, um homem nada algum tempo e acaba comido pelo tubarão. Naturalmente a viúva chora, lamenta-se, cobre-se de luto. Mas é isso mesmo, tinha de ser, o que tem de ser tem muita força. Coisa estranha. O mundo que Jorge Amado nos revela é tão nosso que nos espanta. Vivemos nele, sentimos em nós essas forças misteriosas de raças diferentes. E no entretanto como ainda o conhecemos pouco! É que nos esforçamos por saber o que se passa na Europa e percorremos o nosso caminho com os olhos fechados.
Graciliano Ramos, in Garranchos

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