Arte: Kaleb de Carvalho
Peri,
Iracema, a escrava Isaura, o alemão Lenz, o Timbira — como essa
gente era complicada e falava difícil! Na floresta bruta ou pelas
vizinhanças da senzala, adotavam sintaxe encrencadíssima, ideias e
sentimentos que os gringos manifestam nos livros. Todos os heróis,
que deliciaram, ou chatearam, nossos pais, eram falsos, contrafeitos,
mal traduzidos do francês e pessimamente arrumados numa terra que
ninguém estudava convenientemente. Os escritores nacionais viviam no
mundo da lua, isto é, viviam aqui na cidade, cavando qualquer coisa
na política, na burocracia ou na imprensa, mendigando pistolões e
artigos. Ainda há poucos anos era comum ver alguns gesticulando na
porta do Garnier, vermelhos, suados, embromadores e famintos de
elogios. Esses homens criavam um mundo absurdo, os seus personagens
mexiam-se em regiões desconhecidas, porque às vezes os autores se
envergonhavam de localizá-los em Santa Rita de Passa Quatro ou
Jacaré dos Homens. Ou penetravam o sertão brasileiro, mas um sertão
irreal, caluniado, acanalhado. Felizmente Peri, Iracema e os alemães
do Sr. Graça Aranha estão mortos. Temos é uma quantidade razoável
de sujeitos bem-intencionados que se propuseram examinar
cuidadosamente o que se passa nas plantações de cacau, nos
engenhos, nas repartições, nas casas de cômodos, nos bordéis, nas
favelas, nas cadeias, nos colégios, homens que abandonaram os
salões e as florestas de pano pintado, foram ver como se comportavam
os trabalhadores do eito, os presos, os retirantes, os vagabundos, os
criminosos, as prostitutas, os funcionários públicos e as crianças
das escolas. Um desses observadores, e dos melhores, é
incontestavelmente Jorge Amado. A sua galeria de tipos, já bem
vasta, cada vez mais se enriquece com figuras que ele vai arrancar à
vida no Recôncavo e no interior da Bahia. São criaturas admiráveis,
definitivamente incorporadas ao nosso minguado patrimônio literário,
pretos e mulatos habitantes dos morros e dos saveiros, pequena
humanidade que se move numa luz muito forte, Guma, Antonio Balduíno,
mestre Manuel, Lívia, Maria Clara, crianças perdidas e malandros,
mendigos e contrabandistas, ladrões e macumbeiros, a professora
cheia de sonhos indefinidos, a moça de azul que passa a distância,
imprecisa e nebulosa, todos mais ou menos resignados, mais ou menos
fatalistas, agitando-se às vezes em revoltas bruscas, mas confiantes
de ordinário, à espera de um milagre que endireite as coisas. Nada
de comum entre essas criaturas e os heróis do romance antigo,
convencionais e arbitrários, híbridos de selvagem e cristão,
vazios e enfeitados, absolutamente bons ou absolutamente maus. Os
mestiços de Jorge Amado não são bons nem maus, ou antes são as
duas coisas ao mesmo tempo — e por isso confundem-se com os
brasileiros de carne e osso, que são assim mesmo, bebem e jogam, vão
à sessão espírita, acreditam em sonhos, conversam putaria e
desejam que falem deles nas folhas. É verdade que os nossos amigos
do morro do Capa Negro, do cais, da ladeira do Pelourinho ainda não
chegaram ao espiritismo e à literatura das revistas, mas
aproximam-se disso: amam as macumbas e desejam ser adulados por
poetas bisonhos, em folhetos de capa vistosa, que se vendem por um
níquel nas feiras. A miséria aqui não nos aparece de punhos
cerrados e rangendo dentes: encolhe-se com doçura, espera que as
coisas melhorem e acabem por arranjar-se, confia no feitiço, na
sorte, na proteção de divindades bárbaras e terríveis. Um sopro
de poesia varre todas as imundices, perfuma esse monturo social. O
próprio vício tem aparência amável. Uma prostituta sacia o desejo
do vagabundo sem dinheiro, a mulata Esmeralda engana o amante
inocentemente, alegremente, livre de pecados, um brilho de triunfo
nos olhos verdes. Muitos crimes circulam nas páginas do escritor
baiano, mas circulam discretamente, sem a carranca trágica do
dramalhão, sem o adjetivo campanudo que deforma os atos simples e
naturais. Furtos, roubos, contrabandos, navalhas e punhais, brigas em
quantidade. Para que dar excessivo relevo a fatos ordinários? A
gente lastima. É o diabo. Mas que se há de fazer? Estava escrito. A
embarcação bateu na coroa e afundou, um homem nada algum tempo e
acaba comido pelo tubarão. Naturalmente a viúva chora, lamenta-se,
cobre-se de luto. Mas é isso mesmo, tinha de ser, o que tem de ser
tem muita força. Coisa estranha. O mundo que Jorge Amado nos revela
é tão nosso que nos espanta. Vivemos nele, sentimos em nós essas
forças misteriosas de raças diferentes. E no entretanto como ainda
o conhecemos pouco! É que nos esforçamos por saber o que se passa
na Europa e percorremos o nosso caminho com os olhos fechados.
Graciliano
Ramos, in Garranchos
Nenhum comentário:
Postar um comentário