O
texto de Santo Agostinho fala geralmente de todos os reinos, em que
são ordinárias semelhantes opressões e injustiças, e diz que,
entre os tais reinos e as covas dos ladrões — a que o santo chama
latrocínios — só há uma diferença. E qual é? Que os reinos são
latrocínios, ou ladroeiras grandes, e os latrocínios, ou
ladroeiras, são reinos pequenos: Sublata justitia, quid sunt
regna, nisi magna latrocinia? Quia et latrocinia quid sunt, nisi
parva regna? É o que disse o outro pirata a Alexandre Magno.
Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo Mar Eritreu a
conquistar a Índia, e como fosse trazido à sua presença um pirata
que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito
Alexandre de andar em tão mau ofício; porém, ele, que não era
medroso nem lerdo, respondeu assim. — Basta, senhor, que eu, porque
roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma
armada, sois imperador? — Assim é. O roubar pouco é culpa, o
roubar muito é grandeza; o roubar com pouco poder faz os piratas, o
roubar com muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem
distinguir as qualidades e interpretar as significações, a uns e
outros definiu com o mesmo nome: Eodem loco pone latronem et
piratam, quo regem animum latronis et piratae habentem. Se o Rei
de Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o
pirata, o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e
merecem o mesmo nome.
Quando
li isto em Sêneca, não me admirei tanto de que um filósofo estoico
se atrevesse a escrever uma tal sentença em Roma, reinando nela
Nero; o que mais me admirou, e quase envergonhou, foi que os nossos
oradores evangélicos, em tempo de príncipes católicos e timoratos,
ou para a emenda, ou para a cautela, não preguem a mesma doutrina.
Saibam estes eloquentes mudos que mais ofendem os reis com o que
calam, que com o que disserem, porque a confiança com que isto se
diz é sinal que lhes não toca e que se não podem ofender; e a
cautela com que se cala é argumento de que se ofenderão, porque
lhes pode tocar. Mas passemos brevemente à terceira e última
suposição, que todas três são necessárias para chegarmos ao
ponto.
Suponho
finalmente que os ladrões de que falo não são aqueles miseráveis,
a quem a pobreza e vileza de sua fortuna condenou a este gênero de
vida, porque a mesma sua miséria, ou escusa, ou alivia o seu pecado,
como diz Salomão: Non grandis est culpa, cum quis furatus fuerit:
furatur enim ut esurientem impleat animam. O ladrão que furta
para comer, não vai, nem leva ao inferno; os que não só vão, mas
levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de
mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo
predicamento, distingue muito bem S. Basílio Magno: Non est
intelligendum fures esse solum bursarum incisores, vel latrocinantes
in balneis; sed et qui duces legionum statuti, vel qui commisso sibi
regimine civitatum, aut gentium, hoc quidem furtim tollunt, hoc vero
vi et publice exigunt: Não são só ladrões, diz o santo, os
que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes
colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente merecem
este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e
legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das
cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os
povos. — Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e
reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem
perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e
enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros
homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros de justiça
levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: — Lá vão os
ladrões grandes a enforcar os pequenos. — Ditosa Grécia, que
tinha tal pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não
padecera a justiça as mesmas afrontas! Quantas vezes se viu Roma ir
a enforcar um ladrão, por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia
ser levado em triunfo um cônsul, ou ditador, por ter roubado uma
província. E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões
triunfantes? De um, chamado Seronato, disse com discreta
contraposição Sidônio Apolinar: Nou cessat simul furta, vel
punire, vel facere: Seronato está sempre ocupado em duas coisas:
em castigar furtos, e em os fazer. — Isto não era zelo de justiça,
senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo, para roubar ele só.
Declarado
assim por palavras não minhas, senão de muito bons autores, quão
honrados e autorizados sejam os ladrões de que falo, estes são os
que disse e digo que levam consigo os reis ao inferno. Que eles
fossem lá sós, e o diabo os levasse a eles, seja muito na má hora,
pois assim o querem; mas que hajam de levar consigo os reis é uma
dor que se não pode sofrer, e por isso nem calar. Mas se os reis tão
fora estão de tomar o alheio, que antes eles são os roubados, e os
mais roubados de todos, como levam ao inferno consigo estes maus
ladrões a estes bons reis? Não por um só, senão por muitos modos,
os quais parecem insensíveis e ocultos, e são muito claros e
manifestos. O primeiro, porque os reis lhes dão os ofícios e
poderes com que roubam; o segundo, porque os reis os conservam neles;
o terceiro, porque os reis os adiantam e promovem a outros maiores;
e, finalmente, porque, sendo os reis obrigados, sob pena de salvação,
a restituir todos estes danos, nem na vida, nem na morte os
restituem. E quem diz isto já se sabe que há de ser Santo Tomás.
Faz questão Santo Tomás, se a pessoa que não furtou, nem recebeu
ou possui coisa alguma do furto, pode ter obrigação de o restituir.
E não só resolve que sim, mas, para maior expressão do que vou
dizendo, põe o exemplo nos reis. Vai o texto: Tenetur ille
restituere, qui non obstat, cum obstare teneatur. Sicut principes,
qui tenentur custodire justitiam in terra, si per eorum defectum
latrones increscant, ad restitutionem tenentur, quia redditus, quos
habent, sunt quasi stipendia ad hoc instituta, ut justitiam
conservent in terra: Aquele que tem obrigação de impedir que se
não furte, se o não impediu, fica obrigado a restituir o que se
furtou. E até os príncipes, que por sua culpa deixarem crescer os
ladrões, são obrigados à restituição, porquanto as rendas, com
que os povos os servem e assistem, são como estipêndios instituídos
e consignados por eles, para que os príncipes os guardem e mantenham
em justiça. — É tão natural e tão clara esta teologia, que até
Agamenão, rei gentio, a conheceu, quando disse: Qui non vetat
peccare, cum possit, jubet.
Padre
Antônio Vieira, in Sermão do bom ladrão
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