Ao
acordar, naquele dia preliminar da Primavera, senti imediatamente que
alguma coisa tinha acontecido de muito fundamental na ordem do mundo.
Eu, homem de despertar difícil, pulei da cama tão bem-disposto e
leve que, por um momento, assustei-me com a sensação indizível que
sentia. Ao pegar o copo habitual para a minha água matutina, notei
que se achava cheio de uma substância volátil, penetrada de uma
linda cor violeta. E não sei por que bebi do copo vazio,
estranguladamente, o ar da Primavera, de gosto azul e fragrância
fria, com um peso específico de sonho.
Durante
alguns minutos nada me aconteceu. Tomei meu café, fumei um cigarro e
dei uma olhada nas coisas. Mas de repente senti que em mim a matéria
começava a se transformar. Palpitações violentas confrangeram-me o
coração e eu mal conseguia respirar. Vi minha filhinha Susana
distorcer-se à minha frente como ante um espelho côncavo e logo em
seguida penetrou-me um cheiro tão monumental que pensei se me
tivesse enlouquecido a imaginação. Era um cheiro de menininha, um
cheiro que eu conhecia bem, próprio de minha filha, mistura de
talco, suorzinho, lavanda, xixi, sabonete, leite e sono; mas desta
vez com uma tal amplitude que eu podia perfeitamente distinguir cada
um dos subcheiros da sua composição. No talco, por exemplo, senti
um cheiro de polvilho que não o abona, talco tão caro! e senti
também que no leite havia um cheiro de água, o que só vem
corroborar a certeza geral de que o leite, nesta cidade do Rio de
Janeiro, anda sendo fartamente batizado.
Depois
senti milhões de cheiros. Não os descreverei todos para não ferir,
com o desagrado de alguns, os ouvidos - diria melhor: os narizes - do
leitor mais delicado. Como todo o mundo sabe, a praia do Leblon não
cheira a rosas - e caiba-me aqui mais uma vez chamar a atenção das
autoridades competentes para o crime que é despejarem os esgotos
naquelas águas onde se banha o que de mais inocente há no bairro: a
criançada rica, remediada e pobre das ruas pavimentadas e da praia
do Pinto. Enfim, estou a fugir do meu assunto, mas valha-me a
referência para registrar um cheiro enorme que senti na ocasião: um
cheiro de miséria, que só poderia porvir da dita praia do Pinto,
lugar, como todo mundo sabe, onde se comprime, em barracões
infectos, a mais negra, sórdida e desamparada indigência da zona.
Mas
até já ia me esquecendo: senti um cheiro de nazismo, súbito. Ora -
direis - como é esse tal cheiro de nazismo? Reconheço a dificuldade
de descrevê-lo em toda a sua complexidade, mas penso que era um
cheiro branco, inodoro, perfeitamente ortodoxo no entanto, com laivos
de salsicha, chope e cachorro policial, um cheiro de radiotelegrafia
e talvez de cemitério. Não podia, porém, precisar de onde ele
vinha, querendo me parecer, sem haver nisso qualquer insinuação,
que chegava da rua Visconde de Pirajá, possivelmente, de algum café
ou bar, desses onde se reúnem os nazistas conhecidos e desconhecidos
que continuam a se aporrinhar mutuamente em grupos, pelos bebedouros
de importação germânica que ainda existem nesta cidade
hospitaleira.
Tudo
isso constituía um fenômeno muito curioso. Os cheiros mais
estranhos, os mais perversos, os mais doces, os do amor, os da
solidão, perseguiam-me como outros tantos espíritos da Primavera.
Um cheiro dolorosíssimo de morte chegou-me ao mesmo tempo que um
odor de nascimento. Soube que alguém morria e nascia naquele
instante particular do mundo e senti o cheiro da minha vaidade de me
saber dono de um tão grande privilégio. Curioso também: só não
consegui sentir bem, em meio àquela sinfonia de cheiros, o aroma das
coisas obviamente cheirosas como as flores e as mulheres em geral. O
perfume do mar, por exemplo, eu o sentia em toda a sua frescura,
verde, salso, infinito, e também o cheiro da areia que por sua vez
cheirava a nuvem. Cheiro horrível era o de uma mosca que naquela
ocasião voejava à minha volta: bicho imundo! Tive que fugir para a
varanda, onde senti o vigoroso cheiro da madeira dos troncos, um
rubicundo cheiro de sol e... ah, esses gatos miseráveis! Um dia
ainda passo fogo num!
Ao
sentir um cheiro de cachaça pensei comigo que meu amigo... (não,
não o desmoralizarei) devia estar por perto: e efetivamente, pouco
depois chegava ele com um queijo de Minas debaixo do braço, cujo
cheiro me deu vertigens. Mas eu acho o cheiro de queijo tão bom
(contra, bem sei, a opinião de quase todo mundo, que, estou certo,
irá rir de mim) que seria capaz de usá-lo no lenço, quando,
naturalmente, não houvesse ninguém por perto. Aliás, poderia usar
no lenço também cheiro de graxa ou gasolina, cheiro de torrefação
de café ou mesmo cheiro de padaria de madrugada, quando o pão é
feito.
Tantos
cheiros, tantos... O cheiro do teu riso, minha adorada, de tua boca
quente e sem malícia. O cheiro de tua pureza, coisa inefável,
parecendo sândalo ou alfazema. O cheiro da tua devoção de cada
instante, cheirando a alecrim ou mato verde, o cheiro da tua emoção
constante, como o da terra viva molhada de chuva...
E
depois senti um cheiro sobrenatural, um gigantesco cheiro de
sobrenatural, um cheiro de éter, um cheiro de cristal transparente
em vibração, um cheiro de luz antiga, ainda fria dos eternos
espaços por onde passara em seu caminho para a Terra. A Primavera
cheirava toda para mim, só para mim, desnudada, a dançar na manhã
azul perfeita, embriagante, toda olhos claros e sorrisos, a abrir com
beijos de brisa a boca infantil das corolas nascituras. E dentro da
Primavera senti um cheiro mágico de Paz.
Vinicius
de Moraes, in Prosa
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