segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

A pirâmide visual da leitura

O Egito floresceu no século XI sob o domínio dos fatímidas, tirando sua riqueza do vale do Nilo e do comércio com seus vizinhos do Mediterrâneo, enquanto suas fronteiras arenosas eram protegidas por um exército recrutado no exterior - berberes, sudaneses e turcos. Esse arranjo heterogêneo de comércio internacional e mercenários deu ao Egito fatímida todas as vantagens e desígnios de um estado verdadeiramente cosmopolita. Em 1004, o califa al-Hakim (que assumira o poder aos onze anos de idade e desaparecera misteriosamente durante uma caminhada solitária 25 anos depois) fundou uma grande academia no Cairo - a Dar al-Ilm, ou Casa da Ciência - segundo o modelo de instituições pré-islâmicas, doando ao povo sua importante coleção de manuscritos e decretando que “todo mundo pode vir aqui para ler, transcrever e instruir-se”. As decisões excêntricas de al-Hakim - proibiu jogo de xadrez e a venda de peixes sem escamas - e sua notória sede de sangue foram temperadas, na imaginação popular, por seu sucesso administrativo. Seu objetivo era tornar o Cairo fatímida não apenas o centro simbólico do poder político, mas também a capital da busca artística e da pesquisa científica; com essa ambição, convidou para a corte muitos astrônomos e matemáticos famosos, entre eles al-Haytham. A missão oficial de al-Haytham era estudar um método que regulasse o fluxo do Nilo. Isso ele fez, sem êxito, mas também gastou seus dias preparando uma refutação das teorias astronômicas de Ptolomeu (que, segundo seus inimigos, “era menos uma refutação do que um novo conjunto de dúvidas”) e suas noites escrevendo o grosso volume sobre ótica que lhe asseguraria a fama.
De acordo com al-Haytham, todas as percepções do mundo externo envolvem uma certa influência deliberada que deriva da nossa faculdade de julgar. Para desenvolver essa teoria, al-Haytham seguiu o argumento básico da teoria da intromissão de Aristóteles - segundo a qual as qualidades do que vemos entram no olho por meio do ar - e fundamentou sua escolha com explicações físicas, matemáticas e fisiológicas precisas.
Mas, de forma mais radical, al-Haytham fez uma distinção entre “sensação pura” e “percepção”, sendo a primeira inconsciente ou involuntária - ver a luz fora da minha janela e as formas cambiantes da tarde – e exigindo a segunda um ato voluntário de reconhecimento seguir um texto numa página. A importância do argumento de al-Haytham estava em identificar pela primeira vez, no ato de perceber, uma gradação da ação consciente que vai do ver ao decifrar ou ler.
Al-Haytham morreu no Cairo, em 1038. Dois séculos mais tarde, o erudito inglês Roger Bacon - tentando justificar o estudo da ótica ao papa Clemente IV numa época em que certas facções da Igreja Católica sustentavam violentamente que a pesquisa científica era contrária ao dogma cristão – ofereceu um resumo revisado da teoria al-Haytham.
Segundo al-Haytham (e, ao mesmo tempo, minimizando a importância da sabedoria islâmica), Bacon explicou a Sua Santidade a mecânica da teoria da intromissão.
Segundo Bacon, quando olhamos para um objeto (uma árvore ou as letras SOL), forma-se uma pirâmide visual que tem sua base no objeto e seu ápice no centro da curvatura da córnea. Nós “vemos” quando a pirâmide entra em nosso olho e seus raios são dispostos sobre a superfície do nosso globo ocular, refratados de tal forma que não se cruzam. Ver, para Bacon, era o processo ativo pelo qual uma imagem do objeto entrava no olho e era então apreendida pelos “poderes visuais” dele.
Mas como essa percepção se torna leitura? Como o ato de apreender letras relaciona-se com um processo que envolve não somente visão e percepção, mas inferência, julgamento, memória, reconhecimento, conhecimento, experiência, prática? Al-Haytham sabia (e Bacon certamente concordava) que todos esses elementos necessários para realizar o ato de ler conferiam-lhe uma complexidade impressionante, cujo desempenho satisfatório exigia a coordenação de centenas de habilidades diferentes. E não apenas essas habilidades, mas o momento, o lugar e a plaquinha, o rolo, a página ou a tela sobre a qual o ato é realizado afetam a leitura: para o pastor sumério anônimo, a aldeia perto de onde pastoreava suas cabras e a argila arredondada; para al-Haytham, a nova sala branca da academia do Cairo e o manuscrito de Ptolomeu lido desdenhosamente; para Bacon, a cela da prisão a que fora condenado por seus ensinamentos heterodoxos e seus preciosos volumes científicos; para Leonardo, a corte do rei Francisco I, onde passou seus últimos anos, e os cadernos de anotações que mantinha em código secreto, os quais só podem ser lidos diante de um espelho. Todos esses elementos desconcertantemente diversos unem-se naquele ato único; até aí, al-Haytham presumira.
Mas o modo como tudo acontecia, que conexões intrincadas e fabulosas esses elementos estabeleciam entre eles, essa era uma questão que, para al-Haytham e seus leitores, permanecia sem resposta.
Os estudos modernos de neurolinguística, a relação entre cérebro e linguagem, começaram quase oito séculos e meio depois de al-Haythan, em 1865. Naquele ano, dois cientistas franceses, Michel Dax e Paul Brocat sugeriram em estudos simultâneos, mas separados, que a grande maioria da humanidade, em consequência de um processo genético que começa na concepção, nasce com um hemisfério cerebral esquerdo que se tornará a parte dominante do cérebro para codificar e decodificar a linguagem; uma proporção muito menor, em sua maioria canhotos ou ambidestros, desenvolve essa função no hemisfério direito. Em uns poucos casos (pessoas predispostas geneticamente a um hemisfério esquerdo dominante), danos precoces ao hemisfério esquerdo resultam numa reprogramação cerebral e levam ao desenvolvimento da função da linguagem no hemisfério direito. Mas nenhum dos hemisférios atuará como codificador e decodificador enquanto a pessoa não for exposta efetivamente à linguagem.
No momento em que o primeiro escriba arranhou e murmurou as primeiras letras, o corpo humano já era capaz de executar os atos de escrever e ler que ainda estavam no futuro.
Ou seja, o corpo era capaz de armazenar, recordar e decifrar todos os tipos de sensação, inclusive os sinais arbitrários da linguagem escrita ainda por ser inventados. Essa noção de que somos capazes de ler antes de ler de fato - na verdade, antes mesmo de vermos uma página aberta diante de nós - leva-nos de volta à ideia platônica do conhecimento preexistente dentro de nós antes de a coisa ser percebida. A própria fala desenvolve-se seguindo um padrão semelhante. “Descobrimos” uma palavra porque o objeto ou ideia que ela representa já está em nossa mente, pronto para ser ligado à palavra. É como se nos fosse oferecido um presente do mundo externo (por nossos antepassados, por aqueles que primeiro falam conosco), mas a capacidade de apreender o presente é nossa. Nesse sentido, as palavras ditas (e, mais tarde, as palavras lidas) não pertencem a nós nem aos nossos pais, aos nossos autores: elas ocupam um espaço de significado compartilhado, um limiar comum que está no começo da nossa relação com as artes da conversação e da leitura.
Alberto Manguel, in Uma história da leitura

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