terça-feira, 25 de setembro de 2018

O amor em Botafogo

I / BRANCA

Eu conheci Branca no colégio público, tinha por aí meus sete anos. Era a Escola Afrânio Peixoto e ficava a meio caminho da rua da Matriz. Nesse tempo a gente se deslumbrava diante de uma borracha Faber, das grandes, boas não só para apagar como para morder. Não havia ainda cadernos verde-amarelos, com hinos transcritos nas costas e se usavam pequenas ardósias que os alunos chamavam "a minha pedra", para a qual havia também um lápis, “o lápis de pedra”, que riscava a superfície negra com um rinchado de arrepiar uma tartaruga.
Branca foi a minha primeira namorada. Morava na casa contígua à minha, na rua Voluntários da Pátria, lar de meus avós, para onde eu vinha da Ilha do Governador, onde viviam meus pais, durante o ano letivo. A menina usava o vestido bem acima dos joelhos e tinha sempre um laço de cor no chinó.
No princípio não dei muita atenção a ela, por causa de duas meninas da minha classe que, embora não namorasse, me perturbavam por demais. Uma me dera um beijo um dia, em plena hora da comunhão, na matriz de São João Batista, onde oficiava o então padre Rosalvo da Costa Rego. A outra fazia composições lindas sobre o pôr-do-sol, que tocavam fundo o meu literatismo despontante.
Comecei a amá-la porque um dia, no portão de sua casa, minha mão encostou de leve em sua perna. Nunca mais esqueci essa sensação. Foi a coisa mais fresca, dúctil, lisa, benfazeja que jamais toquei em minha vida. Parecia uma imensa borracha Faber. E namorei-a apesar do seu sobrenome, que me envergonhava um pouco e prestava-se a uma porção de piadas por parte dos meninos (ela chamava-se Varanda), e de sua cor, pois Branca era quase pretinha. Branca me dava cola em história do Brasil.
Nunca mais pus a mão em sua perna.

II / NEGRA

Negra era linda. Andava como uma jovem pantera, o passo elástico desenvolvendo esferas no espaço em torno. Eu, sinceramente, não me achava merecedor dela e, de certo modo, até hoje me pergunto por que Negra me escolheu entre tantos outros garotos. Ela era um pouquinho mais alta que eu, e excedia em majestade. Qualquer coisa assim como se agora, por exemplo, Ursula Andress viesse ao Brasil e cismasse comigo.
Eu tinha um misto de vergonha e orgulho de sair com ela na rua. Sim, vergonha, porque os outros meninos a olhavam com cobiça e alguns dirigiam-lhe gracejos. Ficava cego de raiva mas não fazia nada porque isso era a todo instante. Até que um dia Negra parou (foi ali na Sorocaba), e apontou para o grupo - uns três guris - que tinha mexido com ela, em termos mais pesados.
- Vai e dá neles!
E eu parti com tal raça que os meninos, depois de derrubado o primeiro, fugiram e ficaram nos vaiando de longe. Negra deu-me um rápido olhar de quem diz: muito bem! - e dando-me a mão partiu comigo: eu com náusea de estômago, como até hoje tenho depois que entro em cólera
Negra sabia de mais coisas que o João. Levava-me para sua casa e bastava a mãe ou o pai saírem da sala, e a menina dava-me violentas “enxovas”. Gostava de beijar como Greta Garbo, que era a rainha cinematográfica da época, ou seja, dando-me uma gravata e colocando meu rosto sob o dela. Aquilo me humilhava um pouco, mas também não vamos exagerar. Eu era vidrado por Negra e para mim tudo o que ela fazia estava perfeito.
Só sei que, como cheguei, me fui. Um verão ela subiu para Petrópolis onde eu ia visitá-la às vezes, numa bela casa à margem do Piabanha. Certo dia cheguei lá e ela veio atender-me no portão:
- Eu queria dizer a você que já tenho outro namorado.
Voltei, no antigo trenzinho de cremalheira, lavado em lágrimas. Ah! Negra, por que você foi fazer uma coisa dessas comigo e me desprover assim do tato de seus cabelos louros, da sua boca gulosa e de sua pele mais branca do que a lua?
Vinicius de Moraes, in Prosa

Nenhum comentário:

Postar um comentário