Na primeira vez de
um homem e uma mulher, que mal se conhecem e dividem por uma noite a
maior das intimidades, em que se entregam e se consomem, há um final
que é habitual: o que aconteceu exatamente?
Então, se
perguntam em segredo, na nostalgia precoce da despedida, com a porta
do elevador aberta, se será que vai rolar novamente.
Como se conheceram?
Onde muitos se
conhecem: numa festa de amigos em comum.
Ela chegou
acompanhada por um garotão que fez sucesso com o mulherio do grupo.
Linda. Olharam-se, cumprimentaram-se e passaram muito tempo se
examinando de longe.
Até acabar o gelo,
o sorvete, a seleção do iPod de um, e passarem do uísque para a
cerveja. Os que acordavam cedo foram embora. Como o garotão dela,
depois definido como “apenas um amigo”.
Ele lhe ofereceu
uma latinha gelada. Ela surpreendentemente disse que não bebia.
Nada. Nunca. Never. Quer dizer… Quase nunca.
Ele teorizou.
“Beber traz tantos problemas. Uns conselhos precisam ser seguidos.
Apesar de tentador, evite falar verdades que estão há tempos
entaladas no gogó. Risque do mapa as palavras exorcizar, desabafar.
Não é preciso, no momento em que o pileque começa a agir, ser
verdadeiro e sincero. Beba, fique alto, continue sorrindo, fale o
mínimo possível e concorde com tudo.”
“Especialmente se
o patrão estiver por perto”, ela concordou.
Ele continuou: “Na
segunda dose, dê o celular para um amigo guardar, para não mandar
mensagens com resoluções definitivas, provas de amor absoluto,
arrependimentos tardios. Nem tente telefonar de madrugada para uma
paixão desfeita que, a essa altura, assinou em cartório uma
declaração de convívio marital com outra pessoa, faz planos de
viagens longas para países exóticos e pesquisa em qual escola
próxima matricularão a prole que será responsável pela mudança
da categoria do veículo familiar de sedan para minivan.”
Riram.
O papo rolou. Ela
não entendia nada de bebidas. Ele parecia um boêmio didático, um
especialista. “Os árabes inventaram os destilados. Nasceu o porre
homérico. Que não se sabe se foi relatado na Ilíada ou na
Odisseia”, ele contou.
Merecia ter um
programa numa rádio, em que alternam dicas e músicas.
“Já vi Engov
como brinde em banheiro de casamento”, ela lembrou.
Na verdade, ela já
reparara nele em outra ocasião. Num casamento. Em que ele estava
acompanhado por uma garotinha de minissaia que não parava de falar,
com a metade da idade dele, definida como “periguete”, termo de
que ele nunca ouvira falar.
Filha de um amigo,
de um ex-patrão, ele confessou. Foi um erro, um deslize.
Ela gostou da
resposta.
Queixaram-se da
hipocrisia dominante nos novos tempos.
Terminaram o papo
imaginando se era possível haver 100% de honestidade numa relação
de trabalho, amizade ou amorosa. E imaginaram, gargalhando, as
possibilidades de se dizer a verdade sempre. Como num quadro do
Fantástico.
Haveria o dia em
que um cara diria para uma mulher: “Só quero te comer.” Ou em
que ela diria para o cara: “Sorry, você até que é gato,
mas não rolou química, e estou apaixonada por um restaurateur
especialista em comida mediterrânea.” Ou chegaria alguém para
reclamar ao chefe: “Olha, eu até poderia enganá-lo e afirmar que
a concorrência quer me contratar pagando o dobro, mas será que não
rola um aumentinho?”
“Estou bêbado,
melhor eu ir embora…”
“Já?”
Não deu outra,
trocaram os números de telefone, para quem sabe continuarem aquela
conversa com um grau de sobriedade aprovado por qualquer blitz do
bafômetro.
Foi no dia seguinte
que ele torpedeou confessando que adorou o encontro.
E ela respondeu de
imediato dizendo que fora mútuo.
Ele perguntou então
quando poderiam repetir, tomar um café, que é o código que se usa
para encontros que sabe-se lá como terminam. Especialmente para
aqueles que não bebem.
E ela devolveu
perguntando quando ele podia.
Ele nem titubeou e
disse que no dia seguinte. E logo se arrependeu, pois sabe que, numa
corte, a ansiedade é um veneno sem antídoto para o começo de uma
história. Mas ela não podia, e perguntou se não poderia ser
naquela mesma noite, em que ela estava livre.
Ele enfim respondeu
claro que sim. Sugeriu o café ao lado da casa dele. Ou na própria
casa dele. Deu o nome da rua, para saber se ela teria como ir até
lá.
A resposta demorou.
Deve estar refletindo, pensou, no convite ousado, sem rodeios. Será
que fui rápido demais? Ou está no outro lado da cidade? Bem, fui
honesto.
Ela demorou, mas
respondeu, surpresa, que morava na mesma rua, a uma quadra dele, e
que precisaria de um tempinho para se arrumar e levaria um jantar.
Eles tinham poucos
minutos.
Ótimo, não deu
tempo para se perguntarem se faziam a coisa certa já que
praticamente se conheceram mesmo na noite anterior.
Ela chegou logo
depois carregando uma sacola de feira, com uma deliciosa baguete para
fora, comidinhas e… vinho!
Riram da
coincidência. Tinham a mesma farmácia, banco, café na esquina,
feira, e nunca se encontraram pelo bairro.
Ele colocou Curtis
Mayfield. Sem pestanejar. Achou que era quem combinava com aquela
noite. Ela serviu a mesa. Pão, queijos, vinho, morangos, geleias,
água de coco… Existe algo mais propício?
Não é que ela
esvaziou uma taça num gole?!
Meia hora depois,
estavam agarrados na sala.
Minutos depois, ele
a levou para conhecer o apartamento.
Segundos depois,
ele estava na cama. Ela subiu em cima dele. Ele levantou o vestido
dela. Estava sem calcinha. Sem sutiã. Com uma camisinha na mão.
A afinidade no papo
era a mesma do ato. Como se se conhecessem há anos. Descobriram
rápido do que o outro gostava. E como gozava. Deliciaram-se sem
culpa. Se deram na primeira noite. E daí?
Entraram pela
madrugada na cozinha, já vestidos. Ela enfiou a sobra de queijos e
geleias na geladeira dele. Lavaram a pouca louça. Deram um tapa na
pia. Falaram do passado amoroso de cada um. Um rápido resumo do
presente afetivo.
Então, ela disse,
enxugando as mãos num pano de pratos: “Já que a honestidade é a
marca do nosso encontro, queria dizer que estes potinhos são da
Turquia, gosto muito deles. Posso deixá-los aqui. Mas a gente vai se
ver de novo?”
Ele abriu o armário
da cozinha, para guardar as taças, e viu outros potes da Turquia, da
Grécia, uma xícara do México, outra do Peru, autêntica, pois
estava escrito nela “Perú” com acento. E se lembrou de brincos
de prata, pérolas e até um relógio esquecidos por outras, perdidos
em gavetas pela casa. Sabia exatamente a quem pertenciam. Nunca foram
devolvidos. Periguetes?
Riu e concluiu.
Sim, devolverei estes potinhos.
Haverá outro
encontro, ele respondeu, despedindo-se na porta do elevador.
Honestamente.
E tiveram. Vários
encontros. Muitos. Rolam ainda. E não só na farmácia, no banco, na
feira. Mas sob seus lençóis, sóbrios e bêbados.
Foram vistos pela
última vez dando um rolé em Istambul. Em casas de chá. Ele parou
de beber. Quer dizer… Não parou totalmente. Sabe como é.
Marcelo Rubens
Paiva, in As verdades que ela não diz
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