quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Potinhos da Turquia

Na primeira vez de um homem e uma mulher, que mal se conhecem e dividem por uma noite a maior das intimidades, em que se entregam e se consomem, há um final que é habitual: o que aconteceu exatamente?
Então, se perguntam em segredo, na nostalgia precoce da despedida, com a porta do elevador aberta, se será que vai rolar novamente.
Como se conheceram?

Onde muitos se conhecem: numa festa de amigos em comum.
Ela chegou acompanhada por um garotão que fez sucesso com o mulherio do grupo. Linda. Olharam-se, cumprimentaram-se e passaram muito tempo se examinando de longe.
Até acabar o gelo, o sorvete, a seleção do iPod de um, e passarem do uísque para a cerveja. Os que acordavam cedo foram embora. Como o garotão dela, depois definido como “apenas um amigo”.
Ele lhe ofereceu uma latinha gelada. Ela surpreendentemente disse que não bebia. Nada. Nunca. Never. Quer dizer… Quase nunca.
Ele teorizou. “Beber traz tantos problemas. Uns conselhos precisam ser seguidos. Apesar de tentador, evite falar verdades que estão há tempos entaladas no gogó. Risque do mapa as palavras exorcizar, desabafar. Não é preciso, no momento em que o pileque começa a agir, ser verdadeiro e sincero. Beba, fique alto, continue sorrindo, fale o mínimo possível e concorde com tudo.”
Especialmente se o patrão estiver por perto”, ela concordou.
Ele continuou: “Na segunda dose, dê o celular para um amigo guardar, para não mandar mensagens com resoluções definitivas, provas de amor absoluto, arrependimentos tardios. Nem tente telefonar de madrugada para uma paixão desfeita que, a essa altura, assinou em cartório uma declaração de convívio marital com outra pessoa, faz planos de viagens longas para países exóticos e pesquisa em qual escola próxima matricularão a prole que será responsável pela mudança da categoria do veículo familiar de sedan para minivan.”
Riram.
O papo rolou. Ela não entendia nada de bebidas. Ele parecia um boêmio didático, um especialista. “Os árabes inventaram os destilados. Nasceu o porre homérico. Que não se sabe se foi relatado na Ilíada ou na Odisseia”, ele contou.
Merecia ter um programa numa rádio, em que alternam dicas e músicas.
Já vi Engov como brinde em banheiro de casamento”, ela lembrou.

Na verdade, ela já reparara nele em outra ocasião. Num casamento. Em que ele estava acompanhado por uma garotinha de minissaia que não parava de falar, com a metade da idade dele, definida como “periguete”, termo de que ele nunca ouvira falar.
Filha de um amigo, de um ex-patrão, ele confessou. Foi um erro, um deslize.
Ela gostou da resposta.
Queixaram-se da hipocrisia dominante nos novos tempos.
Terminaram o papo imaginando se era possível haver 100% de honestidade numa relação de trabalho, amizade ou amorosa. E imaginaram, gargalhando, as possibilidades de se dizer a verdade sempre. Como num quadro do Fantástico.
Haveria o dia em que um cara diria para uma mulher: “Só quero te comer.” Ou em que ela diria para o cara: “Sorry, você até que é gato, mas não rolou química, e estou apaixonada por um restaurateur especialista em comida mediterrânea.” Ou chegaria alguém para reclamar ao chefe: “Olha, eu até poderia enganá-lo e afirmar que a concorrência quer me contratar pagando o dobro, mas será que não rola um aumentinho?”
Estou bêbado, melhor eu ir embora…”
Já?”
Não deu outra, trocaram os números de telefone, para quem sabe continuarem aquela conversa com um grau de sobriedade aprovado por qualquer blitz do bafômetro.

Foi no dia seguinte que ele torpedeou confessando que adorou o encontro.
E ela respondeu de imediato dizendo que fora mútuo.
Ele perguntou então quando poderiam repetir, tomar um café, que é o código que se usa para encontros que sabe-se lá como terminam. Especialmente para aqueles que não bebem.
E ela devolveu perguntando quando ele podia.
Ele nem titubeou e disse que no dia seguinte. E logo se arrependeu, pois sabe que, numa corte, a ansiedade é um veneno sem antídoto para o começo de uma história. Mas ela não podia, e perguntou se não poderia ser naquela mesma noite, em que ela estava livre.
Ele enfim respondeu claro que sim. Sugeriu o café ao lado da casa dele. Ou na própria casa dele. Deu o nome da rua, para saber se ela teria como ir até lá.
A resposta demorou. Deve estar refletindo, pensou, no convite ousado, sem rodeios. Será que fui rápido demais? Ou está no outro lado da cidade? Bem, fui honesto.
Ela demorou, mas respondeu, surpresa, que morava na mesma rua, a uma quadra dele, e que precisaria de um tempinho para se arrumar e levaria um jantar.

Eles tinham poucos minutos.
Ótimo, não deu tempo para se perguntarem se faziam a coisa certa já que praticamente se conheceram mesmo na noite anterior.

Ela chegou logo depois carregando uma sacola de feira, com uma deliciosa baguete para fora, comidinhas e… vinho!
Riram da coincidência. Tinham a mesma farmácia, banco, café na esquina, feira, e nunca se encontraram pelo bairro.
Ele colocou Curtis Mayfield. Sem pestanejar. Achou que era quem combinava com aquela noite. Ela serviu a mesa. Pão, queijos, vinho, morangos, geleias, água de coco… Existe algo mais propício?
Não é que ela esvaziou uma taça num gole?!
Meia hora depois, estavam agarrados na sala.
Minutos depois, ele a levou para conhecer o apartamento.
Segundos depois, ele estava na cama. Ela subiu em cima dele. Ele levantou o vestido dela. Estava sem calcinha. Sem sutiã. Com uma camisinha na mão.
A afinidade no papo era a mesma do ato. Como se se conhecessem há anos. Descobriram rápido do que o outro gostava. E como gozava. Deliciaram-se sem culpa. Se deram na primeira noite. E daí?
Entraram pela madrugada na cozinha, já vestidos. Ela enfiou a sobra de queijos e geleias na geladeira dele. Lavaram a pouca louça. Deram um tapa na pia. Falaram do passado amoroso de cada um. Um rápido resumo do presente afetivo.
Então, ela disse, enxugando as mãos num pano de pratos: “Já que a honestidade é a marca do nosso encontro, queria dizer que estes potinhos são da Turquia, gosto muito deles. Posso deixá-los aqui. Mas a gente vai se ver de novo?”
Ele abriu o armário da cozinha, para guardar as taças, e viu outros potes da Turquia, da Grécia, uma xícara do México, outra do Peru, autêntica, pois estava escrito nela “Perú” com acento. E se lembrou de brincos de prata, pérolas e até um relógio esquecidos por outras, perdidos em gavetas pela casa. Sabia exatamente a quem pertenciam. Nunca foram devolvidos. Periguetes?
Riu e concluiu. Sim, devolverei estes potinhos.
Haverá outro encontro, ele respondeu, despedindo-se na porta do elevador. Honestamente.
E tiveram. Vários encontros. Muitos. Rolam ainda. E não só na farmácia, no banco, na feira. Mas sob seus lençóis, sóbrios e bêbados.

Foram vistos pela última vez dando um rolé em Istambul. Em casas de chá. Ele parou de beber. Quer dizer… Não parou totalmente. Sabe como é.
Marcelo Rubens Paiva, in As verdades que ela não diz

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