segunda-feira, 30 de julho de 2018

Cálculos apertados

A luz do crepúsculo foi desaparecendo aos poucos. A mãe deixou o grupo e entrou na casa, de onde os homens não tardaram a ouvir o bater das tampas de ferro do fogão. Um instante depois, ela estava de volta à reunião em que todos pareciam meditar.
O avô disse:
A coisa tem dois lados pra se ver. Antigamente, o pessoal dizia que um pregador dá azar.
Tom falou:
Mas ele diz que não é mais um pregador.
O avô agitou as mãos:
Quem uma vez foi um pregador será sempre um pregador. Disso ocês podem ficar certos. Mas, também, muita gente dizia antigamente que era bom ter um pregador sempre na companhia. Quando alguém morre, ele pode servir bem no enterro. Quando alguém casa, lá está o pregador. Quando nasce uma criança, é o pregador que batiza ela. Eu sempre disse que tem pregadores e pregadores. É só a gente saber escolher o que presta. E este aqui, até eu gosto dele. Não é nada burro.
O pai enfiou o graveto que tinha na mão debaixo de um montículo de poeira e ficou a girá-lo entre os dedos, abrindo um pequeno túnel.
Mas não se trata de saber somente se ele traz sorte ou azar — falou lentamente. — A gente precisa fazer os cálculo. É o diabo quando a gente precisa fazer cálculo assim apertados. Mas vamo ver. Estão aí a avó e o avô, são duas pessoas. E eu, o John e a mãe... são cinco. E Noah e Tommy e Al, são oito. E Rosa e Connie, são dez. E Ruthie e Winfield, são doze. E também a gente tem que carregar os cães, senão que é que a gente ia fazer com eles? Não se pode dar um tiro num bom cachorro, e por aqui não tem ninguém pra dar eles. Então, são catorze ao todo.
Não contando com as galinhas e os dois porcos — disse Noah.
O pai disse:
Acho melhor a gente salgar os dois porcos na viagem. Vamo precisar de carne. E assim a gente só tem que levar as barricas de carne salgada. Mas a questão é saber se nós todos cabemo no caminhão, nós e o pregador também. E se podemo dar comida pra mais uma pessoa. — Sem virar a cabeça, perguntou: — Será que podemos, mãe?
A mãe aspirou profundamente:
A questão não é saber se podemos; a questão é saber se queremos — disse com firmeza. — Quanto a poder, acho que não podemos nem ir pra Califórnia ou pra outro lugar qualquer; mas quanto a querer, a gente querendo faz o que pode. Por falar nisso, a gente viveu aqui muitos anos e nunca ninguém disse que um Joad ou um Hazlett recusou comida, teto ou transporte para alguém que tava necessitado. Tinha alguns maus mesmo, mas tão maus assim não.
O pai interrompeu-a:
Mas se não tiver lugar pra ele? — Virara a cabeça para encará-la, e estava envergonhado com o tom usado pela mulher. — Se a gente não caber, todos, no caminhão?
Nem agora tem lugar bastante, com ele ou sem ele — replicou ela. — O caminhão só dá bem pra seis pessoas, e são doze, pelo menos, que têm de viajar de qualquer maneira. Uma pessoa a mais não faz diferença, e um homem forte e saudável nunca é demais. De qualquer maneira, a gente, com dois porcos e mais de cem dólares, ficar pensando se pode sustentar mais uma pessoa... — Ela interrompeu-se e o pai sentou-se, abatido com aquela lição. Tinha sido vencido.
A avó disse:
É uma boa coisa a gente ter um pregador na companhia. Ele disse uma bonita prece pra gente, hoje de manhã.
O pai olhou o rosto de cada um dos presentes, à espera de novos protestos, e depois falou:
Traz ele pra cá, Tommy. Se ele vai com a gente, é bom que teja aqui.
Tom levantou-se e foi andando em direção à casa.
Casy! Ô, Casy! — gritou.
Uma voz abafada respondeu, vinda dos fundos da casa. Tom foi até o canto da construção e viu o pregador sentado, encostado à parede, mirando as estrelas que brilhavam no céu sem nuvens.
Me chamou? — perguntou Casy.
Sim. Já que o senhor vem com a gente, é melhor ficar conosco, ajudar a combinar a viagem.
Casy ergueu-se. Ele conhecia os regulamentos de família e sabia que tinha sido admitido nesta, e com uma posição elevada, pois que tio John estava se afastando para o lado, a fim de dar-lhe lugar no conselho, entre a sua pessoa e a do pai de Tom. Casy também se acocorou com os outros, de frente para o avô, que estava entronizado no estribo do caminhão.
A mãe tornou a entrar na casa. Ouviu-se o riscar de um fósforo e logo a luz amarela, fraca, de uma lamparina iluminou a cozinha escura. Quando ela ergueu a tampa do panelão, o odor estimulante de carne cozida com legumes infiltrou-se no grupo, através da porta aberta. Eles esperaram até que a mãe regressasse ao quintal cada vez mais escuro, pois que mãe tinha posição de destaque na reunião.
O pai continuou:
Precisamos combinar o dia da partida. Quanto mais cedo, melhor. O que a gente tem que fazer antes é matar e salgar os porcos e embrulhar as nossas coisas. E precisamos andar depressa.
Noah interveio:
Se a gente se apressar, pode terminar tudo amanhã mesmo e partir depois de amanhã.
Tio John discordou:
Não dá pra se esfriar a carne em um dia. Agora não é época de matança. E a carne vai estragar, se não esfriar direito.
Bom, então vamo matar os porco esta noite mesmo. Já haverá mais tempo para a carne esfriar. Vamo comer e começar logo. Tem sal bastante?
Tem, sim. E temos também duas boas barricas.
Bem, então é só começar — disse Tom.
O avô procurou se agarrar a qualquer coisa que o ajudasse a descer do estribo.
Tá ficando escuro — disse. — E eu tô com fome. Quando a gente chegar na Califórnia, vou ter o tempo todo cachos de uva nas mãos, pra comer quando quiser, sim senhor. — Levantou-se, afinal, e os homens o imitaram. Ruthie e Winfield, como dois endiabrados, saltitavam alegres na poeira. Ruthie sussurrou numa voz rouca:
Matar porcos e viajar pra Califórnia. Matar porcos e viajar pra Califórnia...
E Winfield estava louco de alegria. Enfiou os dedos na boca, fez uma careta terrível, e saiu a pular e a gritar:
Eu sou um porco velho. Olha. Eu sou um porco velho. Olha o sangue, Ruthie! — E cambaleou e caiu ao chão, agitando braços e pernas.
Mas Ruthie era mais velha e sabia da seriedade da situação.
E ir pra Califórnia — disse ela outra vez. E sabia que esse era o momento mais importante de sua vida.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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