Dois guardas à
porta, barrando a passagem. O bolo de gente na calçada, espichando
pescoço para assuntar.
— Vai ver que
mataram alguém no edifício.
— Com certeza
assaltaram o banco, e…
— Que banco? Não
está vendo que não tem banco nenhum aí?
— Já sei.
Pegaram lá em cima um grupo de subversivos, e eles estão
encurralados, não querem se render. Não saio daqui enquanto os
caras não aparecerem.
Cresce a confusão.
Tão rápido, que até parece organizada. Todo mundo colabora para
que seja total. E fala, fala.
— Olha aquela
velha desmaiando!
— Velha coisa
nenhuma, é uma lourinha muito da bacana. E não está desmaiando,
está é brigando de unha e dente, alguém apalpou ela ou afanou a
bolsa.
— Te garanto que
houve morte. Um padre abriu caminho e entrou lá dentro, apesar dos
guardas. Padre mesmo, desses de batina, sacumé?
— Se o cara já
morreu, não adianta ele entrar, ora essa. Salvo se ainda está
agonizando. E quem garante a você que por estar de batina esse que
entrou lá não é padre de araque? Tem muita falsificação pelaí.
— Não estou
vendo fumaça. Incêndio não é.
— Pode ser nos
fundos. Espera até a fumaça aparecer. O último incêndio que eu
assisti, na Tijuca, levou horas pra convencer.
— Quem sabe foi
uma manicure que se atirou no pátio? Já vi um caso assim.
— Por essas e
outras é que só moro em casa, e casa térrea, sem escada, pra não
dar grilo. Eu, hem?
— É, mas tem
muito inconveniente. Nas casas baixas a poluição é servida a
domicílio.
— Repara aqueles
dois entrando na raça.
— E na raça
foram rechaçados, tá vendo?
— Pronto,
interditaram o edifício.
— Pior. Estão
esvaziando o edifício.
— Corta essa.
Todo mundo tem direito de entrar e direito de sair. E os que
trabalham lá em cima, por que irão deixar de trabalhar? Os que
precisam subir para ir ao dentista, ao médico, sei lá, com que
direito são impedidos? Tá errado. Qual, isso é um país sem…
— Calma,
Secundino. Acho bom você moderar suas expansões.
— É, mas o
senador Farah Diba entrou com passe livre, espia só.
— Não tem
senador com esse nome, siô.
— Tem um
parecido, mas é deputado.
— Deputado ou
não, com esse ou com outro nome, mas entrou. Eu vi.
— Então não há
tragédia, ele não é de ir aonde pega fogo.
— Cerraram as
portas de aço!
— Isso tá me
cheirando a elevador despencado. Não tem dia que não caia um em
Copacabana. E essa ambulância que não vem? Devia ter sempre uma
ambulância de plantão na porta de cada edifício.
— O diabo são os
palestinos. Imagina se o carteiro deixou na portaria uma daquelas
cartas com bomba…
— Já não se tem
onde morar sossegado. Até entrar pelo cano é perigoso. Lá dentro
tem assaltante à espera.
— E na rua,
então? Que é que nós estamos fazendo aqui, ameaçados de todos os
lados, prestando atenção num negócio que não é da nossa conta,
me diga o senhor?
— Sei lá. Mas
agora está saindo um caixotão, não atino o que seja. Quem sabe se
não é um novo crime da mala!
— Nem me fale
nisso. Só de pensar, fico toda arrepiada; passe a mão no meu braço,
veja como estou. Cortar um pobre de Cristo em fatias, feito
mortadela, depositar na mala e despachar de avião!
— Era de trem que
as malas com cadáveres se despachavam, sua ignorante.
— Isso foi no seu
tempo, vovozinho. Hoje, quem é que passa pra trás o avião pra dar
preferência a trem de ferro?
— Pois então
vamos chegar perto e espiar o caixão do defunto.
— Não é caixão,
gente, é geladeira!
— O quê? O
defunto estava dentro da geladeira?!
— Ah, meu chapa,
tu não morou que isso é uma liquidação de eletrodomésticos?
Carlos Drummond
de Andrade, in 70 historinhas
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