quarta-feira, 27 de junho de 2018

Da mutilação à plenitude

Em 1921, a Copa América ia ser disputada em Buenos Aires. O presidente do Brasil, Epitácio Pessoa, baixou um decreto de brancura: ordenou que não se enviasse nenhum jogador de pele morena, por razões de prestígio pátrio. Das três partidas que jogou, a seleção branca perdeu duas.
Nesse campeonato sul-americano Friedenreich não jogou. Naquela época, era impossível ser negro no futebol brasileiro, e ser mulato era difícil: Friedenreich entrava em campo sempre tarde, porque no vestiário demorava meia hora esticando o cabelo, e o único jogador mulato do Fluminense, Carlos Alberto, branqueava a cara com pó de arroz.
Depois, apesar dos donos do poder e não por causa deles, as coisas foram mudando. Bem mais tarde, com o passar do tempo, aquele futebol mutilado pelo racismo pôde se revelar em toda a plenitude de suas diversas cores. Após tantos anos é fácil comprovar que foram negros ou mulatos os melhores jogadores da história do Brasil, de Friedenreich a Romário, passando por Domingos da Guia, Leônidas, Zizinho, Garrincha, Didi e Pelé. Todos vinham da pobreza, e alguns voltaram a ela. Por outro lado, nunca houve nenhum negro ou mulato entre os campeões brasileiros de automobilismo. Como o tênis, o esporte das pistas exige dinheiro.
Na pirâmide social do mundo, os negros estão embaixo e os brancos em cima. No Brasil chamam isso de democracia racial , mas a verdade é que o futebol oferece um dos poucos espaços mais ou menos democráticos onde as pessoas de pele escura podem competir em pé de igualdade. Podem, mas até certo ponto – porque também no futebol uns são mais iguais que os outros. Embora tenham os mesmos direitos, nunca competem nas mesmas condições o jogador que vem da fome e o atleta bem alimentado. Mas pelo menos no futebol há alguma possibilidade de ascensão social para o menino pobre, em geral negro ou mulato, que só tem a bola como brinquedo: a bola é a única varinha mágica em que pode acreditar. Talvez ela lhe dê de comer, talvez ela o transforme num herói, talvez em deus.
A miséria o torna apto para o futebol ou para o delito. Desde que nasce, esse menino é obrigado a transformar em arma sua desvantagem física, e rapidamente aprende a driblar as normas da ordem que lhe nega um lugar. Aprende a descobrir como despistar cada pista, e torna-se sábio na arte de dissimular, surpreender, abrir caminho onde menos se espera e tirar o inimigo de cima com um requebro de cintura ou qualquer outra melodia da música malandra.
Eduardo Galeano, in Futebol ao sol e à sombra

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