quarta-feira, 27 de junho de 2018

Na Garganta do Diabo

Odeio Carlos III e o Marquês de Pombal”, disse uma voz ao meu lado. “Quando eles expulsaram os jesuítas, destruíram um projeto civilizador. Foi uma tragédia para todos nós.”
Enquanto o guia falava em espanhol, os turistas o olhavam perplexos. Eu observava as ruínas de uma missão jesuítica perto de Posadas. Os turistas fotografaram as paredes e colunas amarelas, de um amarelo terroso, avermelhado, escurecido pelo tempo; depois se afastaram para beber refrigerante e cerveja. O guia, agora sozinho e calado, contemplava uma escola do século XVIII.
Parecia um homem tristíssimo. Quando me aproximei dele e disse que eu era um visitante interessado nessa tragédia, me encarou com seus olhos rasgados e perguntou: “Visitante ou turista?”.
Acho que dá no mesmo”, respondi.
Não, não dá no mesmo”, replicou em português, sem sotaque. “Hoje em dia os turistas fotografam tudo, sem conhecer nada. Não querem ouvir histórias do lugar, nem a história do lugar”.
Argumentei que a imensa maioria dos turistas sempre agiu assim.
Não é verdade”, disse em espanhol, também sem sotaque.
Perguntei se ele era bilíngue.
Sem nenhum pedantismo, disse que podia reverenciar a lua em seis idiomas. O pai de José Yu Hu era um chinês de Goa; a mãe, uma brasileira de Foz do Iguaçu, neta de índios.
Nasci a poucos metros do rio Paraná”, ele disse. “Cresci na tríplice fronteira, ouvindo o espanhol paraguaio e argentino, ouvindo o cantonês falado por meu pai e o português materno. Essas três línguas não são menos familiares para mim do que a paisagem de Foz, Puerto Iguazu e Ciudad del Este.”
Yu Hu contou que aos dezenove anos já era guia de turismo. Estudou a história dos países da tríplice fronteira, leu muitos livros da literatura desses países, leu tudo sobre a Guerra do Paraguai, que, para ele, era uma das maiores atrocidades desta América e a menos comentada, ou a mais ocultada.
Há quarenta e dois anos trabalho com turismo. Naveguei com turistas pelo rio Paraná, andei com eles pela floresta, levei-os para ver de perto as cachoeiras, principalmente a Garganta do Diabo. Antes, quando eu recitava poemas sobre a natureza selvagem, eles me ouviam com interesse. Recitava poemas chineses e uma lenda guarani, que eu mesmo tinha traduzido; recitava poemas ingleses, italianos, norte-americanos, franceses, latino-americanos, e os turistas se deleitavam com as minhas palavras; quer dizer, com os versos de grandes poetas traduzidos por mim.”
Bebeu água do cantil e fez um gesto contrariado com a cabeça. Eu me refugiara na sombra de uma parede de pedras, mas Yu Hu não saiu do sol. Era moreno, e seu rosto asiático podia ser também indígena.
Às vezes recitava poemas sobre a morte”, ele prosseguiu. “Quem, diante da Garganta do Diabo, a um passo desse abismo cercado de rochas e água, não pensa na morte? Eu dizia: ‘Esse abismo sem fundo, esse abismo quase infinito não nos remete ao nosso destino comum?’. Eles me olhavam com ar pensativo. Refletiam sobre minhas palavras, refletiam sobre a vida e seu avesso: o silêncio eterno. Talvez refletissem sobre o amor, nossa ansiada plenitude, ou sobre o vazio da vaidade. E, enquanto eles pensavam em coisas ao mesmo tempo simples e profundas, ouvíamos o barulho estrondoso da água caindo no abismo.”
Um escorpião saiu de uma fresta das pedras e ficou parado, à espera de algo. Perguntei a Yu Hu em que ele pensava.
Eu?”, ele disse, olhando o escorpião. “Eu também pensava no nosso destino. Naquela época eu era um jovem guia de turismo que olhava o rosto de jovens latino-americanos e pensava: estão todos perdidos? Estamos todos à deriva? Perdidos ou à deriva, não importa… Estávamos vivos, líamos e pensávamos muito, fazíamos perguntas sobre a nossa vida, nossa história. Mas isso faz muito tempo, mais de trinta anos… Na década de 1980, poucos queriam ouvir poemas. E hoje, já nem ouso recitar um soneto de amor. Há uns seis meses, aqui mesmo em Posadas, um turista me perguntou: ‘Yu Hu, você não gostaria de participar do Facebook?’. Os outros turistas tiraram fotos do meu corpo diante dessa parede de pedras. Enquanto riam e fotografavam, eu lhes dizia: ‘Não façam isso com esse velho inútil’. Acho que nem me escutaram. Outro dia, quase por distração, quando citei um poema de Borges, um brasileiro perguntou: ‘Borges, o centroavante do Santos?’. Fiquei mudo, senti um ardor nos olhos, senti saudades daqueles mochileiros da Garganta do Diabo, todos sabiam quem era Jorge Luis Borges, quem era Augusto Roa Bastos, quem era o autor do poema ‘Meditação sobre o Tietê’.”
A mão que segurava o cantil descaiu. Yu Hu virou o corpo para a escola arruinada, ia dizer alguma coisa, mas os turistas já estavam por ali. Seguravam latas e garrafas e um deles pediu ao guia para que fossem embora.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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